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sábado, 10 de abril de 2010

Dança Macabra

José — também conhecido como José da Kombi, ou simplesmente Zé Carreteiro — entrou no boteco, logo ali, quase na esquina da Saldanha Marinho, a ruela dos malandros, com a Visconde de Nacar, a avenida das prostitutas, e cumprimentou seus amigos. No balcão estavam sentados Jonas de barbas grisalhas, Ronaldo ou Rony — o mecânico truculento —, o Mário da construção — exímio pedreiro que carregava pinga na garrafa-térmica para firmar o pulso logo de manhã — Paolo da Sicília — italiano mal-encarado que adorava cuspir no chão, no copo, no balcão, fosse onde fosse — e Pedro — sinuqueiro e pinguço profissional; uma das duas mesas ainda permanecia vazia, na outra estava sentado sozinho o eloqüente João, contador de causos que deixara o interior do estado para procurar emprego na cidade. Malograda tentativa. Ocupação atual: degustador de cerveja. Jogavam sinuca o Chico da Luz, excelente eletricista, e Paulo Véio, um polido e circunspeto senhor na casa dos cinquenta anos, freguês do boteco há mais de quinze.
José entrou e se sentou ao lado de João. Pediu uma caninha. Apenas uma, para começar. Uma televisão monocromática transmitia o jornal das oito, mas ninguém lhe dava importância. Alguns comentavam a derrota do Coritiba no último jogo, outros reclamavam do calor, sempre acompanhado de um pedido — Manda uma loura gelada pra refrescar.
O dono do bar, Bartolomeu, atendia de pronto, sempre atencioso e sorridente, mesmo com o bêbado mais inconveniente. José segurou o seu copo e entornou-o num gole só. Deu uma bafora de satisfação — Ah! Essa é da boa! — recebendo a aprovação de João, que o olhava curioso e ansioso, talvez tentando recordar-se de alguma história mais ou menos interessante que fosse digna de ser posta na roda. Com o cérebro anuviado, desistiu — “Quem sabe mais tarde?”, pensou, esquecendo-se, logo em seguida, daquilo que pensara há dez segundos atrás. José pediu mais uma rodada. Uma terceira. Uma quarta. Uma décima.
Por que ele fazia aquilo?, José pensou, olhando filosoficamente para o reluzente copinho vazio. Não quero voltar pra casa. Não agüento aquele nenê que não para de chorar nunca. Os dois meninos já eram suficientes, não entendo porque a Lúcia quis um terceiro filho. Realmente, não suporto mais essa vida. Ou será que ela pensa que o dinheiro dos carretos é suficiente pra dar o que comer para aqueles pançudinhos? Ela que se vire! Aposto que a cobra da mãe dela deve estar lá em casa. Maldito aquele que inventou a sogra! Os pais deveriam morrer quando duas pessoas se casam. Que pensamento horrível este! Concentre-se no copo. Por que ele está vazio? — Enche aqui, Bartolomeu! — Aí vem ele, meu Salvador! Como é belo o líquido que desce pelo gargalo da garrafa e preenche o copo vazio, e, depois, como eu estendo o meu braço, apanho o copo cristalino, suspendo-o até a minha boca, e como, virando-o rapidamente, sinto aquele líquido cálido e inebriante descendo por minha goela abaixo, caindo gostosamente sobre o meu estômago semivazio, onde o resto de lanche da tarde ainda está sendo digerido, e como ele entorpece o meu cérebro boçal, quase analfabeto. O boteco é belo. A minha casa é o inferno. Adoro as histórias do João, mas esta eu já conheço. É sobre o dia que os sem-terras tentaram invadir a fazenda do seu antigo patrão, e sobre o tiroteio que aconteceu lá quando o fazendeiro resolveu reagir. Deve ser bom morar no campo, longe deste caos que é a cidade, longe do trânsito. Até hoje não sei porque resolvi fazer carretos. Claro que me lembro! Foi quando eu perdi o meu emprego na construção. Se não fosse aquele pequeno acidente. Não foi minha culpa ter derrubado aqueles tijolos na cabeça do negão. Eu não queria ter machucado ninguém. Bons eram os tempos que eu jogava futebol. Eu podia ter sido melhor que Pelé! Foi Lúcia quem me perdeu. Embarrigou bem quando minha carreira de jogador estava começando a deslanchar. Eu estaria na seleção brasileira no máximo em dois anos. Eu seria um grande jogador, sem dúvida! Mulher é bicho ruim, não gosta de ver homem feliz. Se bem que eu ainda amo Lúcia; adoro aqueles olhinhos pretos que me recepcionam quando chego em casa. Então ela vem e me beija na bochecha e diz que sentiu saudades. Sinto falta do seu corpo contra o meu, juntos, entrelaçados, sob os lençóis. Mas isso foi há muito tempo atrás. Agora é só choro e criança berrando, e sogra reclamando que eu tirei sua filha de casa para deixá-la na miséria. Só que ela tem é uma vida de rainha, isso sim! Fica o dia inteiro em casa, sem fazer nada, enquanto eu labuto todo santo dia pra levar comida pra casa. O único luxo que eu tenho é a minha cachacinha de vez em quando. Também sou filho de Deus, caramba!

Zé Carreteiro deixou o boteco trançando as pernas, tropeçando nos próprios pés. Estava alto. Longe. Muito longe. Só não bebeu mais porque o dinheiro que recebera naquele dia havia terminado; se tivesse mais, não teria saído tão cedo de lá. Virou à direita na rua Fernando Moreira e, cambaleante, passou ao lado do tubo de ônibus. Zé Carreteiro caminhou uns cinqüenta passos de bêbado (frente, esquerda, direita, trás, frente, frente, direita, esquerda, trás, frente...). Estacou. Onde estou? Olhou para os lados, para baixo, para cima. Ficou rodando no lugar, tentando distinguir algum ponto de referência, algum rosto conhecido, a sua Kombi. Sua cabeça rodopiava, carros passavam de um lado, ônibus vermelhos e compridos do outro. Onde estou? Cadê a minha perua? Mantinha-se de pé com esforço. Soluçava. Sentiu uma ânsia de vômito, mas ainda não era a hora para isso; talvez em casa. Zé olhou para cima e viu, com pouquíssima distinção, alguém o observando na janela de um prédio. Maldito bisbilhoteiro! Desce aqui embaixo pra eu te dar uma surra e ensinar a não espionar as pessoas! Onde estou? Ele sentiu suas pernas fraquejarem e a cabeça pesou. Deu três passos para trás e tombou, chocando a cabeça violentamente no chão. Toc!
Ninguém se importou com aquele homem inconsciente largado na calçada. As pessoas que passavam por ali ou desviavam ou fingiam que não havia ninguém aos seus pés. Se Zé estava morto ou vivo, isto a pessoa alguma importava. O seu corpo inerte era algo semelhante a um saco de lixo à espera do caminhão de coleta. Isto até que uma viatura da polícia apareceu; não se sabe se ela simplesmente circulava pela região ou se alguém, compadecendo-se ou enojando-se com aquele bêbado despejado na calçada, ligou para a polícia para que eles tomassem alguma providência.
A viatura estacionou sobre a calçada e dois soldados da polícia militar desembarcaram. Olharam com desdém para o vagabundo e ordenaram que ele se levantasse, porém, sem resultado. Trocaram algumas palavras entre si, maldições, talvez, sobre a ingrata profissão deles. Soldado Moraes tentou despertar Zé Carreteiro empurrando-o com os pés. Zé resmungou. Abriu os olhos vagarosamente e viu o vulto uniformizado dos grandalhões. Quem são essas pessoas? Por que estão olhando para mim?, divagou o bêbado, que sentia uma forte dor-de-cabeça, terrível combinação da queda com a embriaguez. Os dois policiais se olharam e decidiram carregar o bêbado até o outro lado da rua e deixá-lo sentado no ponto do ônibus metropolitano. Ergueram-no, suspendendo-o pelos braços (não sem antes ter tentado despertá-lo mais uma vez). As pernas de Zé, semiestendidas, roçavam com o peito dos pés no chão, ao mesmo tempo em que a calça, dois números maior que o manequim do usuário (presente da sua sogra), escorregava lentamente, exibindo sua cueca bege com três dias de uso. Zé se esforçou para erguê-la novamente, mas como era carregado pelos braços, não conseguia segurar a peça de roupa que caía. Os policiais depositaram o bêbado, cujas calças já estavam na altura dos joelhos, na porta de um estabelecimento comercial em construção, localizado logo em frente do ponto de ônibus. Eles embarcaram, então, no automóvel policial e partiram carrancudos.
Uma senhora se aproximou e, postada à espera do coletivo, olhava de soslaio, bastante desconfiada, para o embriagado que estava sentado, com o torso levemente reclinado para a direita, justamente atrás dela.
Onde está a minha Kombi?, procurou-a Zé, desanimado. — A zenhora zabe onde ixtá a minha berua?, murmurou, miando, o ébrio. — Eu acho que iztacionei aqui berto. E soluçou, sentindo o gosto acre dos líquidos gástricos que tentavam voltar. Será que esta gorda não vai me responder? Zé Carreteiro se levantou e, ainda em passos de bêbado, prosseguiu em sua busca pela Kombi. Atravessou a rua, quase sendo atropelado, e caminhou até o tubo do biarticulado. Distinguiu o cobrador e também lhe perguntou sobre a perua. Recebeu apenas um olhar de desdém e continuou em sua marcha. Os pensamentos ainda rodopiavam e mais uma vez não pôde manter-se de pé. Ao contrário da primeira vez, porém, esta queda foi mais amena; Zé Carreiro caiu de joelhos, regurgitou líquido somente, e beijou o solo. Olhava as pedras da calçada formando um mosaico, viu uma barata passando, e viu os pés de um rapaz. Um ônibus passou, ruidoso, estremecendo o chão e ferindo os ouvidos. Zé sentiu vergonha de si próprio, pois estava literalmente na sarjeta. Tal sentimento contribuiu para clarear os pensamentos, de tal modo que, num esforço descomunal, Zé se levantou e esforçou-se para caminhar em linha reta. Viu o seu veículo estacionado e, contente, foi até ele.
Zé Carreteiro dirigiu para casa. Subiu na calçada três vezes, furou cinco sinais vermelhos e quase atropelou um casal de velhinhos. Ao chegar em casa, espancaria sua esposa e seus dois filhos, vomitaria na cama e sujaria todo o banheiro com urina. Quando deitasse sua cabeça na cama para dormir, pensaria apenas em como sua família estragara sua vida, sem refletir em nenhum momento em como ele destruía, dia após dia, as pessoas que mais o amavam.
Eu podia ter sido melhor que Pelé! Ah, se podia!

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