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domingo, 11 de abril de 2010

ai sonhos, sonhos...

Maria de Fátima


Sem ruído, caminho, pé ante pé na bordinha do meu olho esquerdo
E nem estou chorando, que não é lágrima: aquele verde é tinta de eu ter estado a enfeitar-me.
E desço, a ver se o contraforte do sapato surte aquele efeito que vi no cadeirão do sapateiro:
Pode mostrar-me daqueles costurados?
E o homem deu-me um par: verniz encarnado com muitos buraquinhos.
Sobram deles o meu dedo mindinho.
Uma gota verde a deslizar como se fosse lágrima e eu a caminhar no bordo, um pé a seguir ao outro.
– Olha!
Espanto-me e torno:
– Olha como fico bem de saltos altos!
E dizendo isto, distraio-me.
Deslizo pelo rosto e grito:
– Olha como choro!
O contraforte preso entre dois dedinhos, e eu a descalçar-me para que não magoe o olho por onde caminho, devagarinho, sem outro destino que não seja, entendo, mas sem muita certeza.

Irei apenas na sombra dos meus cílios sem que seja para ir para onde.

No meu olho direito, eu estou dormindo e sonho com cavalos e um corso de carnaval com dois palhaços.
Que a minha vista deste lado, é dada a visões: poços e princesas e sapos e muita gordura em poções de bruxedos…
Nunca é assim no olho esquerdo que só adormece quando cantam os galos.

Eu que me sento na bordinha, com os dois sapatos dependurados do mindinho.
Se me acontece adormecer um olho sem que o outro acorde, costumo ter sonhos dos dois olhos.
Quando se dá, fico-me enroscadinha no verde da minha íris como colcha que me cubra.

É só então que calço o meu par de sapatos e ando de saltos muito altos, muito encarnados…Ando, então, por muito lado e não apenas na bordinha do meu olho enfeitado de verde.

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