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sábado, 17 de abril de 2010

Molloy

Samuel Beckett
trad.: Henry Alfred Bugalho

Minha mãe nunca se recusou a me ver, isto é, ela nunca se recusou a me receber, pois fazia muito tempo que ela não enxergava coisa alguma. Vou tentar e falar calmamente. Nós éramos tão velhos, ela e eu, ela havia me tido tão jovem, que éramos como um casal de velhos companheiros, assexuados, sem parentesco, com as mesmas memórias, os mesmos rancores, as mesmas expectativas. Ela nunca me chamava de filho, felizmente, eu não suportaria isto, mas de Dan, não sei porque, meu nome não é Dan. Dan era o nome de meu pai talvez, sim, talvez ela me tivesse por meu pai. Eu a tinha por minha mãe e ela me tinha por meu pai. Dan, você se lembra do dia em que eu salvei a andorinha. Dan, você se lembra do dia em que você enterrou o anel. Eu lembrava, eu lembrava, quer dizer, eu sabia mais ou menos do que ela estava falando, e se eu nem sempre houvesse tomado parte pessoalmente nas cenas por ela evocadas, era o mesmo como se houvesse. Eu a chamava de Mag, quando eu tinha de chamá-la de alguma coisa. E eu a chamava de Mag porque, para mim, sem eu saber porque, a letra g abolia a sílaba Ma, e era como se cuspisse nela, melhor do que qualquer outra letra teria feito. E, ao mesmo tempo, eu satisfazia uma profunda e indubitável necessidade não reconhecida, a necessidade de ter uma Ma, isto é, uma mãe, e de proclamar isto, audivelmente. Pois antes de você dizer mag, você diz ma, inevitavelmente. E pa, na minha parte do mundo, quer dizer pai. Além disto, para mim a questão não se levanta, no momento em que estou escarafunchando agora, quero dizer a questão se chamá-la de Ma, Mag ou de Condessa Caca, ela ser por incontáveis anos surda como uma porta. Acho que ela era um tanto incontinente, tanto de fezes quanto mijo, mas uma espécie de pudor faz com que evitemos o assunto ao nos encontrarmos, e eu nunca pude me certificar disto. Em qualquer caso, não devia ser grande quantidade, alguns esparsos cocos de cabrito molhados a cada dois ou três dias. O quarto cheirava amônia, mas não apenas amônia, mas amônia, amônia. Ela sabia que era eu, pelo cheiro. Sua contraída velha cara peluda se iluminava, ela estava feliz em me cheirar. Ela balbuciava com batidelas de dentadura e, na maioria das vezes, não captava o que ela estava dizendo. Qualquer outro além de mim se perderia nestas balbuciantes batidelas, as quais apenas cessavam durante seus breves instantes de inconsciência. No meu caso, eu não havia vindo para ouvi-la. Eu me comunicava com ela batendo-lhe em seu crânio. Uma batida significava sim, duas não, três eu não sei, quatro dinheiro, cinco tchau. Foi difícil socar este código pra dentro da arruinada e frenética compreensão dela, mas eu consegui, no fim. Que ela confundisse sim, não, eu não sei e tchau, dava na mesma para mim, eu mesmo me confundia. Mas que ela associasse as quatro batidas com alguma outra coisa além de dinheiro era algo a ser evitado a todo o custo. Assim, durante o período de treinamento, ao mesmo tempo em que eu administrava as quatro batidas no crânio dela, eu enfiava uma cédula em seu nariz ou boca. Quanta ingenuidade minha! Pois ela aparentava ter perdido, se não absolutamente toda noção de mensuração, pelo menos a faculdade de contar além de dois. Era demais para ela, sim, a distância era grande demais, de um até quatro. Ao chegar à quarta batida, ela imaginava que era apenas a segunda, tendo sido as duas primeiras apagadas da memória dela tão completamente como se nunca as houvesse sentido, apesar de eu não saber exatamente como algo nunca sentido pode ser apagado da memória, mesmo assim esta é uma ocorrência comum. Ela deve ter pensado que eu dizia não para ela o tempo todo, enquanto que nada estaria mais longe do meu propósito. Iluminado por estas considerações, procurei e, finalmente, encontrei um meio mais eficiente para pôr a ideia de dinheiro em sua cabeça. Isto consistia em substituir a quatro batidas com o nó do dedo indicador por uma, ou mais (de acordo com minhas necessidades) cacetadas com o punho, no crânio dela. Isto ela entendeu. De qualquer modo, eu não vinha pelo dinheiro. Eu pegava o dinheiro dela, mas eu não vinha por causa disto. Minha mãe. Eu não guardo tanto rancor dela.

Excerto de "Molloy", Grove Weinfeld, 1958.

***
Sobre o autor
Samuel Beckett nasceu numa família burguesa  e protestante, e em 1923 ingressa no Trinity College de Dublin, para se formar em Literatura Moderna, especializando-se em francês e italiano. Em 1928, meses após sua mudança para Paris, conhece James Joyce, apresentado por um amigo em comum. Torna-se grande admirador do escritor, e sua obra posterior é fortemente influenciada por ele.

Após lecionar durante o ano de 1930 na Irlanda, Beckett volta no ano seguinte para Paris, fixando residência na cidade, e escreve sua primeira novela, “Dream of Fair to Middling Women” (publicada após a morte do autor, em 1993) Em 1933, Beckett retorna novamente a Dublin, pois, devido ao falecimento de seu pai, encarrega-se de cuidar de sua mãe. Retorna a Paris em 1938, quando é marcado por dois acontecimentos de grande importância: fica gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, com quem viveria o resto da vida e se casaria em 1961.

Depois da eclosão da Segunda Grande Guerra, vincula-se à resistência francesa, na ocasião da invasão de Paris pelo exército nazista, em 1941, juntamente com sua esposa. Afasta-se da resistência em 1942, quando ambos foram obrigados a fugir da França. Morre em 1989, cinco meses depois de sua esposa, de enfisema pulmonar, contra o qual já lutava havia três anos. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse.

A produção beckettiana foi um dos principais ícones do Teatro do Absurdo que faz uma intensa crítica à modernidade. Recebeu o Nobel de Literatura de 1969.

Fonte: Wikipédia

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