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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Alma de Urânio


- Formiga venha aqui, me ajude a subir com a rede na caixa.

  O dia durava mais naqueles tempos, eram boas horas carregando as embarcações. Ultimamente, tratavam de fazer tudo o quanto antes, para não haver atraso no dia da chegada da pedra na aldeia.

  Formiga era parrudo, com mãos grandes e pés tortos. Com uma pá, passava de trapiche em trapiche oferecendo-se para trabalhar.

- Menino, essa areia: pra cima! Olhe aquele balde de peixe, quando terminar com toda essa areia, ele será seu.

  Ao entardecer, bambo de cansaço, leva a pá e o balde com peixes para um trapiche que fica no outro lado da vila.

- Está com sede? Bebe da botija, e corre pra lá. Cuida quando... quando chegar a pedra.

  Pensa três vezes nos peixes, na água, no fogo.

  Imagina ele, em um outro futuro, onde estará do alto dos trapiches, com muitos presentes para todos, com sua música em três cordas, depois de assar o melhor dos pescados para seu avô e avó, então, visualiza a hora em que carrega a pedra com cinco dos seus primos, e todos choram em sua honra.

  Consegue colocar metade do que deve fazer nesse trapiche bem na hora da passagem da pedra pela entrada sul da vila. Se sente abandonado quando nota que não fará o resto há tempo.

- Filho, irei pedir ao espírito da pedra uma maneira de conseguir respeito entre os homens...

  Foi o que sua mãe lhe disse quando antes de desaparecer no momento em que foi eleita para carregar a pedra para a mata.

  Já passou como um raio a carroça dos peixes, sinal de que só ele está ali naquele trapiche. Todos aproveitando a celebração, menos Formiga.

- Vem menino!
Uma senhora agita um pano esfarrapado no ar e grita para Formiga.

  Ele sai aos solavancos, nem se importando com os pedregulhos que cortam seus pés ao longo do caminho, ansioso e desesperado para ver a pedra, que tanto engrandecia suas expectativas. No meio do caminho, seus devaneios corriam ainda mais rápido que ele na sua cabeça, "ainda vou ser alguém de minha gente", pensou consigo. E se “estabacou” no chão, sem ver uma pedra um pouco maior a sua frente.

  Ergue a cabeça, rasteja um pouco, pode ver então “uns alguéns” no meio de umas árvores por ali perto.

  Eles usam coisas nas mãos e olhos e ficam olhando a mulher que recém lhe chamara.

 Formiga se levanta essa gente de fora com esses objetos estranhos estão a sua frente mas não o enxergam.

  Estava a poucos metros da clareira onde acontecia naquele momento a comemoração à pedra. Ia indo em direção a ela, com a mente tão absorta que mal pode notar as pessoas a sua frente. Essas, quando o viram andando, assustaram-se e correram de maneira silenciosa e fantástica.

Chegando à clareira pôde ver que já foram eleitos os carregadores da pedra. Perdeu a parte das oblações aos ancestrais, a parte dos pedidos de proteção e principalmente a dos desejos.

- Está feito.

  Os de fora, escondidos de Formiga, deixam escapar o comentário.

  Formiga pensa, fica matutando o “está feito”. Com toda a manha de seus ágeis passos se aproxima curioso do local onde essa gente estranha se esconde.

  Os estranhos somem. Somem, como os de sua gente a cada nova estação, quando no rito à pedra brilhante.


  Os povos do Níger, sobretudo o povo Tuareg, encontram-se em um estado de crise alimentar. Em conflitos políticos e econômicos, onde a exploração do urânio por parte das multinacionais é o centro dos conflitos que colocam a soberania alimentar da população em segundo plano.

  O povo Tuareg tem suas terras invadidas pela exploração do urânio, no ano de 2008 em armas apresenta suas reivindicações.

  Em fevereiro de 2010, uma junta militar provisória efetua um golpe de Estado, prometendo a libertação progressiva do Níger.

  Povos que precisam comer, assim como nós não comemos pedras brilhantes radioativas. Comer o que só poderá vir da solidariedade e reforma agrária.

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