Maria de Fátima
Amanheci dentro da caixa das batatas. Uma caixa de madeira em ripas mal aparadas, que coloquei ontem na dispensa. Tenho as pernas encolhidas e o braço direito debaixo da cabeça. Deitada de lado, devo parecer um feto, enroladito entre os tubérculos de cor acastanhada. Batatas novas, trazidas por uma amiga de uma courela onde o pai as semeia para sua entretenha. Ele não as vende: distribui pelos filhos e pelos amigos que estão mais por perto. Já pensou, segundo conta a filha, dar aos pobres da vila, mas diz ele, que prefere fazer um bem que lhe fique sem agradeceres e sem lembranças. Terá suas razões, o homem, que nunca pelas batatas me lembraria dele não fosse dar-se este insólito de acordar na caixa em que as guardei, coberta de todos os lados pelas ditas, ainda remeladas de terra seca. Aqui estou eu amanhecendo entre elas.
Olho em volta, quase receando estar tão desperta. A porta da dispensa está fechada. Fui eu que a fechei por receio do cão, pois que pendurei, na noite anterior, umas quantas chouriças e um osso de presunto numa corda de modo que ficassem fora do alcance do cachorro. E mesmo assim, fechei a porta e, por excesso de cuidado ou parvoíce, rodei a chave. E agora, não sei como é que saio.
Tenho um monte de batatas sobre a minha testa e duas depositadas na cova entre a orelha esquerda e o ombro. Cheiram a terra e a caca de cavalo. De um modo muito menos intenso, sinto o odor agradável do presunto. Tenho a coxa direita assente sobre dois tubérculos, um bocadinho maiores: daqueles que costumo escolher para assar e comer com molho.
Estou bem acordada, disso não duvido, mas não dormi a noite inteira neste local, que eu sei que li uma dúzia de páginas de um livro e adormeci deitada bem ao meio da cama, com as pernas tapadas com o lençol, que o edredão de flores encarnadas escorregara para o chão. Não sei como, estou aqui. Tento levantar-me, mas não me desloco nem um pedacinho, por maior que seja o esforço. Reparo que apenas penso como gente, que é só isso: no resto, sou em tudo igual ao vegetal andino com que os Incas alimentavam os filhos.
Oiço vozes!
Uma mulher fala na cozinha aqui ao lado. Gente na minha casa e este meu pé esquerdo que não se mexe!
Devo estar presa nalgum pesadelo; vou esperar que me acorde.
Mas não parece sonho: vejo muito bem os dez chouriços aqui pendurados. E conto-os: um, dois, três… dez chouriços de sangue e mais o osso com pedaços de presunto.
Escuto, com atenção, a voz.
Não. Eu não durmo. É bem real esta mulher quase gritando para outro alguém:
- Podes trazer a roupa da cama. Ontem deixei cair tinta no edredão. Esta mania de desenhar na cama. Põe o tira-nódoas antes de meter na máquina. Faz uma sopa. Vai à dispensa e tira batatas novas. Podes colocar um bocado de presunto.
A voz vai e vem. A mulher anda, decerto, de um lado para o outro. Os solavancos na voz são de quem está mastigando e bebendo que lhe noto nos intervalos que deixa entre as sílabas, enroladas no que pode ser um pão com doce.
- Até logo. Não chego antes das seis.
É a mulher que o diz, e deve ter olhado um relógio, talvez para um que ela tenha no braço, ou para o que pulsa certinho no meu micro-ondas, pois que grita, em falsete:
- Merda, já estou atrasada!
E bate os sapatos na tijoleira num tic- tic ruidoso que me diz serem saltos altos e pontudos os que a dirigem para o fundo, para o lado da sala, para a porta da rua.
Vou percebendo, com um espanto que quase me dá medo, que a voz da mulher é a minha voz, e nem quero perceber que sou eu que me apresso a sair para a reunião das nove meia; reconheço-me, atrasada, afogueada de noites que são sempre madrugadas.
Sou eu! Constato, confusa e incrédula.
Sou eu quem ali está na cozinha, batendo o chão num passo decidido, e também sou eu aqui, deitada na caixa das batatas, suja de terra da apanha e a cheirar a bosta de cavalo. Empapo a cara com uma lágrima incontida pois acredito que é sonho eu ser gente deitada num lençol, que as doze páginas do livro, nem eu as estive lendo, que são de um mundo que invento, tal como o edredão com flores em vermelho: imaginação de uma batatinha-nova desejosa de conhecer o mundo.
Ou não.
Talvez seja mesmo eu quem ali anda na cozinha e acaba de bater com estrondo a porta, que de outro modo não se fecharia. Talvez eu me esteja desdobrando em duas: aquela pessoa feminina e este tubérculo redondo e suculento acordando, espantado, na dispensa, sem saber deslindar se sou mesmo eu, deitada entre batatas.
Um bocado de terra castanha, cai na minha testa e fica bamboleando sobre o mesmo olho que se encandeia com a luz. Alguém que tinha a chave abriu a porta. Alguém com uma mão enfeitada com anéis baratos que se espalham pelos dedos e, no pulso, várias pulseiras de missangas em tons de verde. Reconheço, sem margem para qualquer engano, a mão de Beatriz, a minha adorada empregada de há vinte anos. Eu, que nem me mexo um pedacinho, olho a mão que me parece um monstro, e percebo que Beatriz não me reconhece enquanto revolve em minha volta, a apanhar batatas para a sopa. E agarra as duas que eu tinha aninhadas no meu ombro, dirigindo para mim as unhas pintadas de verniz azul-bebé com florinhas desenhadas em rosa choque. Apanha-me com dedos húmidos, um tudo-nada gordurosos. As missangas da pulseira magoam-me quando ela me agarra pelo pescoço. Fico um instante entalada entre dois dedos, que cheiram a água de rosas e ao detergente com que lavou o chão. Depois, caio desamparada no plástico azul de um alguidar. Tenho o pé direito com entorse, mas nem me queixo, nem choro. Fecho os olhos e tento convencer-me que de aqui a pouco acordo.
Talvez seja mesmo eu quem ali anda na cozinha e acaba de bater com estrondo a porta, que de outro modo não se fecharia. Talvez eu me esteja desdobrando em duas: aquela pessoa feminina e este tubérculo redondo e suculento acordando, espantado, na dispensa, sem saber deslindar se sou mesmo eu, deitada entre batatas.
Um bocado de terra castanha, cai na minha testa e fica bamboleando sobre o mesmo olho que se encandeia com a luz. Alguém que tinha a chave abriu a porta. Alguém com uma mão enfeitada com anéis baratos que se espalham pelos dedos e, no pulso, várias pulseiras de missangas em tons de verde. Reconheço, sem margem para qualquer engano, a mão de Beatriz, a minha adorada empregada de há vinte anos. Eu, que nem me mexo um pedacinho, olho a mão que me parece um monstro, e percebo que Beatriz não me reconhece enquanto revolve em minha volta, a apanhar batatas para a sopa. E agarra as duas que eu tinha aninhadas no meu ombro, dirigindo para mim as unhas pintadas de verniz azul-bebé com florinhas desenhadas em rosa choque. Apanha-me com dedos húmidos, um tudo-nada gordurosos. As missangas da pulseira magoam-me quando ela me agarra pelo pescoço. Fico um instante entalada entre dois dedos, que cheiram a água de rosas e ao detergente com que lavou o chão. Depois, caio desamparada no plástico azul de um alguidar. Tenho o pé direito com entorse, mas nem me queixo, nem choro. Fecho os olhos e tento convencer-me que de aqui a pouco acordo.
Oiço o respirar compassado do meu cão que dorme debaixo da bancada onde Beatriz colocou o alguidar com as batatas que vai descascar.
Quando a faca começa a retirar o primeiro pedaço, oiço o ruído do meu todo-o-terreno que arranca no jardim: fui-me embora e deixei-me aqui.
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