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sexta-feira, 17 de abril de 2009

A Seita de Fênix

Jorge Luis Borges
trad.: Henry Alfred Bugalho

Aqueles que escrevem que a seita de Fénix teve sua origem em Heliópolis e a derivam da restauração religiosa que se sucedeu à morte do reformador Amenófis IV, alegam textos de Heródoto, de Tácito e dos monumentos egípcios, mas ignoram, ou querem ignorar, que a denominação de Fénix não é anterior a Hrabano Mauro e que as fontes mais antigas (as Saturnais de Flávio Josefo, digamos) só falam da Gente do Costume, ou da Gente do Segredo. Já Gregorovius observou, nos coventículos de Ferrara, que a menção da Fénix era raríssima na linguagem oral; em Geneva, tratei com artesãos que não me compreendiam quando inquiri se eram homens da Fénix, mas que admitiram, em seguida, serem homens do Segredo. Se não me engano, o mesmo acontece com os budistas; o nome pelo qual o mundo os conhece não é o que eles pronunciam.

Miklosich, numa página bastante famosa, comparou os sectários de Fénix aos ciganos. No Chile e na Húngria, há ciganos, e também há sectários; tirando esta espécie de ubiquidade, muito pouco têm em comum uns com os outros. Os ciganos são charlatães, caldeireiros, ferreiros e adivinhadores da boa sorte; os sectários só exercem felizmente as profissões liberais. Os ciganos configuram um tipo físico e falam, ou falavam, um idioma secreto; os sectários se confundem com os demais e a prova é que não sofreram perseguições. Os ciganos são pitorescos e inspiram os maus poetas; os romances, as estampas e os boleros omitem os sectários... Martín Buber declara que os judeus são essencialmente patéticos; nem todos os sectários o são e alguns abominam o pateticismo; esta pública e notória verdade basta para refutar o erro vulgar (absurdamente defendido por Urmann) que vê em Fênix uma derivação de Israel. Conjetura-se mais ou menos assim: Urmann era um homem sensível; Urmann era judeu; Urmann frequentou os sectários na judiaria de Praga; a afinidade que Urmann sentiu prova um fato real. Sinceramente, não posso concordar com esta asserção. Que os sectários em um meio judaico se pareçam aos judeus não prova nada; o inegável é que se parecem, como o infinito Shakespeare de Hazlitt, a todos os homens do mundo. São tudo para todos, como o Apóstolo; dias atrás, o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, ponderou sobre a facilidade com que se acriollavam.

É dito que a história da seita não registra perseguições. É verdade, mas como não há grupo humano no qual não figurem os partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não tenham sofrido ou executado. Nas guerras ocidentais e nas remotas guerras da Ásia verteram seu sangue secularmente, sob bandeiras inimigas; de muito pouco lhes vale indentificarem-se com todas as nações do orbe.

Sem um livro sagrado que os congregue como a Escritura a Israel, sem uma memória comum, sem esta outra memória que é um idioma, dispersos pela face da terra, diversos de cor e de traços, uma só coisa, o Segredo, os une e uni-los-á até o fim de seus dias. Certa vez, além do Segredo, houve uma lenda (ou talvez um mito cosmogônico), mas os superficiais homens da Fênix a esqueceram e hoje só guardam a obscura tradição de um castigo. De um castigo, de um pacto ou de um privilégio, porque as versões diferem e apenas deixam entrever o veredicto de um Deus que assegura a uma estirpe a eternidade, se seus homens, geração após geração, executam um rito. Comparei os informes dos viajantes, conversei com patriarcas e teólogos; posso dar fé que o cumprimento do rito é a única prática religiosa que observam os sectários. O rito constitui o Segredo. Este, como já indiquei, se transmite de geração em geração, mas o uso não requer que as mães o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes; a iniciação ao mistério é tarefa dos indivíduos mais baixos. Um escravo, um leproso ou um pedinte se fazem de mistagogos. Também uma criança pode doutrinar outra criança. O ato, em si, é trivial, momentâneo e não requer descrição. Os materiais são a cortiça, a cera ou a goma-arábica. (Na literatura se fala de limo; costuma-se usar este também). Não há templos dedicados especialmente à celebração deste culto, mas uma ruína, um sotão, ou um saguão são considerados lugares apropriados. O Segredo é sagrado, mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino, e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para nomeá-lo, mas se entende que todas as palavras o nomeiam, ou, melhor dizendo, que inevitavelmente o aludem, e assim, no diálogo, eu havia dito uma coisa qualquer e os adeptos sorriram, ou se incomodaram, porque sentiram que eu havia tocado o Segredo. Nas literaturas germânicas, há poemas escritos por sectários, cujo sujeito nominal é o mar ou o crepúsculo da noite; são, de algum modo, símbolos do Segredo, ouço repetir. Orbis terrarum est speculum Ludi reza um adágio apócrifo que Du Cange registrou em seu Glossário. Uma sorte de horror sagrado impede a alguns fiéis a execução do simplíssimo rito; os outros os desprezam, mas eles se desprezam ainda mais. Gozam de muito crédito, em troca, aqueles que deliberadamente renunciam ao Costume e logram um comércio direto com a divindade; estes, para manifestarem este comércio, fazem-no com figuras da liturgia e assim John of the Rood escreveu:

Saibam os Nove Firmamentos que o Deus
É deleitável como a Cortiça e o Limo.

Mereci em três continentes a amizade de muitos devotos da Fénix; consta-me que o Segredo, a princípio, lhes pareceu frívolo, penoso, vulgar e (o que é ainda mais estranho) incrível. Não se conformavam em admitir que seus pais houvessem se rebaixado a tais práticas. O raro é que o Segredo não se tenha perdido há tempo; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, tremendamente, a todos os fiéis. Alguém não vacilou em afirmar que já é instintivo.

fonte: http://books.google.com/books?id=7vUfapNfESkC


Jorge Luis Borges - Biografia

"Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção".

O escritor Jorge Luis Borges nasceu na capital argentina, Buenos Aires. Bilíngüe desde a sua infância, aprendeu a ler em inglês antes que em castelhano, por influência de sua avó materna de origem inglesa.

Aos seis anos disse a seu pai que queria ser escritor e aos sete escreveu, em inglês, um resumo de literatura grega. Aos oito, inspirado num episódio de "Dom Quixote" de Cervantes, fez seu primeiro conto: "La Visera Fatal". Aos nove anos, traduziu do inglês "O Príncipe Feliz" de Oscar Wilde.

Em 1914, devido à quase cegueira total, seu pai decide passar uma temporada com a família na Europa. Em Genebra, Jorge escreveu alguns poemas em francês enquanto estudava o bacharelado (1914-1918). Sua primeira publicação registrada foi uma resenha de três livros espanhóis para um jornal de Genebra.

Em 1919, mudou-se para a Espanha e publicou poemas e manifestos na imprensa. Em 1921, retornou a Buenos Aires e redescobriu sua cidade natal, na efervescência dos anos 20. Nesse clima escreveu seu primeiro livro de poemas, "Fervor em Buenos Aires", publicado em 1923.

A partir de 1924, publicou algumas revistas literárias e, com mais dois livros, "Luna de Enfrente" (poesia) e "Inquisiciones" (ensaios), ganhou em 1925 a reputação de chefe da jovem vanguarda de seu país. Nos anos seguintes, ele se transformou num dos mais brilhantes e polêmicos escritores da América Latina.

Inventando um novo tipo de regionalismo, acrescentou uma perspectiva metafísica da realidade, mesmo em temas como o subúrbio portenho ou o tango. Nesta fase escreveu "Cuaderno San Martin" e "Evaristo Carriego". Mas logo se cansou desses temas e começou a especular sobre a narrativa fantástica, a ponto de produzir durante duas décadas, de 1930 a 1950, algumas das mais extraordinárias ficções do século, nos contos de "Historia Universal de la Infamia" (1935); "Ficciones" (1935-1944) e "El Aleph" (1949), entre outras.

Em 1937, Borges foi nomeado diretor da Biblioteca Pública Nacional, o que foi seu primeiro e único emprego oficial. Saiu nove anos depois, indignado com a inclinação fascista que estava tomando a Argentina.

No que se refere ao amor, o caso mais quente do escritor argentino foi com Estela Canto, que depois lançou o livro de memórias "Borges a Contraluz". Ele conta em sua biografia que a pediu em casamento. Moderna e liberada para a época, Estela respondeu: "Eu aceitaria, Georgie, mas não podemos casar sem antes dormir juntos". Borges ficou assustado e desapareceu.

Aos 50 anos, o escritor já havia perdido parcialmente a visão. Com o passar dos anos, quando a cegueira se fez completa, sua mãe, Leonor, passou a cuidar dele, lendo e escrevendo o que ditava.

O reconhecimento literário de Borges se solidificou em 1961 com a conquista do prêmio concedido pelo Congresso Internacional de Editores, que dividiu com Samuel Beckett. Logo receberia também prêmios e títulos por parte dos governos da Itália, França, Inglaterra e Espanha.

Em 1967, Borges casou-se com uma amiga de infância, Elsa Astete. O casamento durou três anos e acabou com Borges fugindo de casa, sem coragem para discutir a separação. Sua mãe, Leonor, morreu em 1975. Seu segundo casamento foi com a sua ex-aluna Maria Kodama que se tornou sua secretária particular em 1981. Kodama era de origem japonesa e tornou-se a herdeira de seus direitos autorais.

Em 1983, Borges publicou no diário "La Nación" de Buenos Aires o relato "Agosto 25, 1983", em que profetizava seu suicídio. Perguntado depois porque não havia se suicidado na data anunciada, respondeu: "Por covardia". Borges afirmava freqüentemente o seu ateísmo e falava da solidão como uma espécie de segunda companheira.

fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u221.jhtm

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