Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Cronópios e Famas

Julio Cortázar
trad.: Henry Alfred Bugalho

Instruções para chorar
Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um pranto que não ingresse no escândalo, nem que insulte o sorriso com sua comparação e torpe semelhança. O pranto médio ou ordinário consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranhos, estes últimos ao final, pois o pranto acaba no momento em que alguém se assoa energicamente.

Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isto lhe resulta impossível por haver contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas ou nestes golfos do estreito de Magalhães nos quais ninguém entra, nunca.

Chegado o pranto, tapará com decoro o rosto usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão com a manga da blusa contra o rosto, e de preferência num canto do quarto. Duração média do pranto, três minutos.

***

Instruções-exemplos sobre a forma de ter medo
Em um povoado da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se um leitor desemboca nesta página ao dar três horas da tarde, morre.

Na praça de Quirinal, em Roma, há um ponto que conheciam os iniciados até o século XIX, e a partir do qual, com a lua cheia, se vê moverem-se lentamente as estátuas dos Dióscuros que lutam com seus cavalos empinados.

Em Amalfí, ao terminar a zona costeira, há um molhe que adentra o mar e a noite. Ouve-se ladrar um cão para mais além do último farol.

Um senhor está espalhando pasta de dentes na escova. De súbito, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher, de coral ou talvez de miolo de pão pintado.

Ao abrir o guarda-roupa para apanhar uma camisa, cai um velho almanaque que se desfaz, desfolha-se, cobre a roupa branca com milhares de sujas mariposas de papel.

Sabe-se de um caixeiro-viajante a quem começou a doer o pulso esquerdo, justamente debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar-se o relógio, jorrou sangue: a ferida mostrava a marca de uns dentes muito finos.

O médico termina de nos examinar e nos tranquiliza. Sua voz grave e cordial precede os medicamentos, cuja receita agora escreve, sentado à sua mesa. De quando em quando, ergue a cabeça e sorri, consolando-nos. Não é de se preocupar, em uma semana estaremos bem. Ajeitamo-nos em nosso assento, felizes, e olhamos distraidamente ao redor. De súbito, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Havia erguido as calças até as coxas, e veste meias de mulher.

Textos extraídos da obra "Historias de Cronopios y Famas" de 1962.

fonte: http://www4.loscuentos.net/cuentos/other/1/3/

***

Julio Cortázar
(Bruxelas, 1914 - Paris, 1984) Escritor argentino. Nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, aos quatro anos, Julio Cortázar se mudou com eles para a Argentina, para morar na província andina de Mendoza.

Depois de completar seus estudos primários, cursou magistério e letras e durante cinco anos foi professor rural. Posteriormente, foi para Buenos Aires e, em 1951, viajou a Paris com uma bolsa. Ao término dela, seu trabalho como tradutor da Unesco lhe permitiu permanecer definitivamente na capital francesa.

Nesta época, Julio Cortázar já havia publicado em Buenos Aires o livro de poemas “Presencia” com o pseudônimo de Julio Denis, o poema dramático “Los reyes" e a primeira de suas narrativas breves, "Bestiário", nas quais admite a profunda influência de Jorge Luis Borges.

A literatura de Cortázar parte do questionamento essencial, aproximando-se de reflexões existencialistas, em obras de marcado caráter experimental, que o tornam um dos maiores inovadores da língua e da narrativa em língua castelhana. Como em Borges, suas narrativas mergulham no fantástico, mesmo sem abandonar de todo a referência à realidade cotidiana, fato que faz com que suas obras sempre tenham uma dívida em aberto com o surrealismo.

Para Cortázar, a realidade imediata significa uma via de acesso a outros registros do real, onde a plenitude da vida alcança múltiplas formulações. É assim que sua narrativa constitui um questionamento permanente da razão e dos esquemas convencionais de pensamento.

O instinto, o azar, o gozo dos sentidos, o humor e o jogo terminam por se identificar com a escrita, que é, por sua vez, a formulação do existir no mundo. As rupturas de ordem cronológica e especial tiram o leitor de seu ponto de vista convencional, propondo-lhe diferentes possibilidades de participação, de modo que o ato de leitura é convocado a completar o universo narrativo.

Tais propostas alcançaram suas mais perfeitas expressões nos romances, especialmente em “Jogo da Amarelinha”, considerada uma das obras fundamentais da literatura em castelhano, e em seus contos, entre eles “Casa tomada” e “A baba do diabo”, ambos adaptados ao cinema, e “O perseguidor”, cujo protagonista evoca a figura do saxofonista negro Charlie Parker.

Rapidamente, Julio Cortázar se converteu numa das principais figuras do chamado "boom" da literatura hispano-americana e desfrutou de reconhecimento internacional. À sua sensibilidade artística somou-se sua preocupação social: Identificou-se com os povos marginalizados e esteve muito próximo dos movimentos de esquerda.

Neste sentido, a viagem a Cuba, em 1962, significou uma experiência decisiva em sua vida. Graças a sua conscientização política e social, em 1970 se deslocou ao Chile para assistir à cerimônia de posse presidencial de Salvador Allende e, mais tarde, foi a Nicarágua para apoiar o movimento sandinista. Como personagem público, interveio com firmeza em defesa dos direitos humanos e foi um dos promotores e membros mais ativos do Tribunal Russell.

Como parte deste compromisso, escreveu inúmeros artigos e livros, entre eles “Dossiê Chile: O livro negro”, sobre os excessos do regime do general Pinochet, e “Nicarágua, tão violentamente doce”, testemunho da luta sandinista contra a ditadura de Somoza, no qual está o conto "Apocalipse em Solentiname" e o poema "Notícia aos viajantes". Três anos antes de morrer, adotou a nacionalidade francesa, mas sem renunciar a argentina.

Share




0 comentários:

Postar um comentário