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sexta-feira, 3 de abril de 2009

A Pedra do Olho Divino






por Carlos Alberto Barros



Em seu costumeiro trabalho de carpir, Mané Santos foi interrompido pelo tilintar do metal da enxada batendo contra algo rígido sob a terra. “Mais um pedregulho”, esbravejou. Quando cavoucou ao redor, notou que era maior do que imaginava. Cavou mais, até formar um buraco de meio metro de diâmetro. A superfície da pedra se estendia por toda a abertura. Mané Santos se agachou para examinar de perto. Soprou a poeira que se acumulava e os reflexos do sol lhe ofuscaram a visão. “Que diacho de pedra brilhante é esta?”, espantou-se. Tornou a pegar a enxada. Deu um, dois... três golpes e lascou um pedaço da rocha, do tamanho de um punho fechado. O fragmento assemelhava-se a um diamante lapidado, porém, de forma irregular, o brilho era intenso e a superfície extremamente lisa. Verificando se ninguém o espiava, guardou a lasca no bolso e tratou de devolver a terra ao buraco. Algumas folhagens por cima disfarçando o local e seu tesouro já estava devidamente ocultado.

O homem presumia estar com algo extraordinário em mãos. Só o que não podia imaginar é que aquela descoberta o destruiria e, junto consigo, levaria todo o povoado de Água Santa à perdição.


Quando a mulher de Mané Santos viu a pedra preciosa, não pensou duas vezes em intimá-lo: “Tu vai fazer uma jóia muito linda com esta pedra. A mulherada de Água Santa vão tudo me invejar”. No dia seguinte, lá estava com a tal da jóia ao pescoço.

Mané Santos, depois de conseguir mais da rocha em sua escavação secreta, fez outro colar. “Este tem destino especial. Uma jóia para outra jóia”. Escondeu-o dentro da calça e saiu.

Depois de algumas horas, voltou para casa. E qual não foi seu espanto ao ser surpreendido pela própria mulher empunhando um facão a lhe ameaçar. “Vem, seu filho-duma-rapariga! Vem, que eu vou lhe mostrar que ninguém me bota cornos e sai impune!”, e golpeou o homem. Pego de surpresa, não conseguiu esquivar-se. Caído e com a cabeça rachada, ainda conseguiu protestar: “Ficou maluca, mulher?” Ao que ela, transfigurada, respondeu: “Maluca é o Cão, teu infeliz! E eu tô é com ele no corpo pra te mandar ao inferno”, e desferiu mais dois golpes: o primeiro, aparado por um braço instintivo; o segundo, no pescoço, fatal.

Em Água Santa, eram comuns estas desavenças encerradas com morte. Sendo que, quando a notícia se espalhou, ninguém ficou impressionado. Ainda mais se tratando de caso de adultério, todos deram razão à mulher do falecido. O que aconteceu, conforme explicou, é que seu marido estava lhe botando chifres com a “putinha da venda”. Mas disto, todos já sabiam. Inclusive, não houve quem não ficasse aliviado por, finalmente, ela descobrir. As pessoas preferiam confessar-se todos domingos, pela omissão, a ter que revelar a verdade. E o padre era o mais infeliz de todos: tinha o peso da consciência proporcional à quantidade de fiéis confessos. Enfim, a mulher disse que não admitia ser traída e que só não matava a tal da “putinha” também para não acabar de vez com a paz do povoado.

Ninguém foi curioso (ou indiscreto) o suficiente para perguntar à viúva como soube da traição. O único digno de tal feito seria Pedro Pitanga, o “grande benfeitor” de Água Santa. Ele era capaz das mais incríveis façanhas com sua lábia e simpatia. Quando foi à casa da mulher e questionou-a sobre o ocorrido, esta contou toda a história. Falou da descoberta do marido, da jóia, da visão na pedra e do facão. Disse que, enquanto olhava o colar, pensava em como seu homem era maravilhoso, e de repente, viu-o aparecer na pedra. Em seguida, viu a “putinha da venda” de pernas abertas, com ele no meio. Também ouviu os gemidos e sacanagens que falavam um ao outro. Depois disso, só esperou para cortar-lhe o pescoço.

Mesmo sabendo das escapadas de Mané Santos, Pedro Pitanga não pôde se conter em perguntar:

- E a senhora matou o homem com a única certeza de uma visão?!

- Se eu vi, foi por Deus. E não sou eu quem vai desconfiar do poder divino.

- Isso é verdade! O que é de Deus é de Deus. Mas, deixa pra lá... E a tal jóia, a senhora ainda tem?

- Eu não uso mais aquela porcaria. Senão, fico lembrando do diabo do Mané. Mas, já lhe mostro – saiu e, em poucos instantes, já voltava com o colar. Erguendo-o na altura dos olhos, continuou:
- Vejo isso e só consigo lembrar do desgraçado cheio de sangue. Ou naquela “éguinha” de perna aberta pra ele.

Após essas últimas palavras, a jóia brilhou levemente e refletiu a imagem da “putinha da venda”. Em seguida, mostrou o local onde ela trabalhava. A cena apresentava-se como quem estivesse olhando por detrás do balcão, sendo que, além do próprio, via-se dois homens conversando (também se ouvia a conversa deles) e a porta aberta para a rua.

Pedro Pitanga, mantendo sua tranqüilidade, disse:

- A senhora tem uma pedra realmente preciosa. Pena que lhe traz más lembranças.

- Isto não é mais que um estorvo. E agora me aparece mostrando o bar da rapariga! Tenha dó! Se acha tão preciosa assim, pode ficar com esta pedra imprestável.

- Olhe, se é para aliviar a tristeza da senhora... eu fico.


Desde muito pequeno, Pedro Pitanga era conhecido por ser empreendedor. Uma de suas empreitadas mais famosas foi quando trouxe o fruto das pitangueiras para Água Santa. A idéia lhe rendeu meses de zombaria e um bom prejuízo, já que nem sua lábia engenhosa foi capaz de convencer o paladar dos fregueses, que odiaram a fruta. A despeito dessa frustração, nunca deixou de investir nas novidades – era um homem de mente científica. Quando conseguiu a jóia, só pensava em como aquele artefato poderia trazer benefícios a seu povoado e, claro, como lhe daria algum dinheiro. Antes, precisava descobrir os detalhes do funcionamento, para isso, foi atrás da “putinha da venda”. Do pescoço da moça, pendia um colar semelhante ao da viúva. “Foi um presente do Manezinho”, disse com um sorriso descarado.

Em sua casa, ao pensar na “putinha”, Pedro Pitanga viu a cena do bar novamente refletida na pedra. Foi aí que entendeu. As duas jóias se comunicavam. Para acioná-las, bastava ter uma à mão e pensar em quem estivesse de posse da outra. “A ciência é espetacular!”, refletia maravilhado. E a partir da descoberta, o mundo de Água Santa viveu uma revolução.

Pedro Pitanga tratou de conseguir mais da jóia com a viúva. Quando viu o tamanho da mina encontrada por Mané, pensou: “Estamos ricos”. A rocha era inesgotável. Quanto mais cavavam, maior se mostrava. Depois de conseguirem algumas dezenas de pedaços, se entocaram dentro de casa e botaram-se a trabalhar. Após vários testes, compreenderam todo o funcionamento: duas pessoas possuíam a jóia; a primeira pensava na segunda, via a imagem desta na pedra, depois via o cenário; a segunda, por sua vez, tinha na pedra a imagem da primeira, mas só via o cenário se pensasse nela. Entendido o processo, foram à confecção dos colares. No dia seguinte, uma grande faixa apareceu em frente à residência:

“Conheça a mais nova maravilha da ciência: A PEDRA DO OLHO DIVINO! Por um preço justo, adquira uma linda jóia de habilidades comunicativas!”

A sociedade de Pedro Pitanga e da viúva estava formada. Os moradores do povoado se encantaram com a novidade, e até quem não tinha dinheiro dava um jeito de conseguir a Pedra do Olho Divino trocando por um porco ou alguns litros de cachaça pura. Na época, não se conhecia telefone, de maneira que a comunicação pelas pedras tornou-se um sucesso estrondoso. Pedro Pitanga mostrou-se tão feliz com os lucros que até resolveu propor casamento à sócia. “Para a prosperidade dos negócios”, dizia.

A jóia trouxe grandes mudanças a Água Santa. Os habitantes mudaram muitas de suas rotinas diárias e passaram a resolver diversos problemas apenas usando o artefato. Se alguém dissesse: “Vai ter futebol no sábado?”, um outro respondia: “Amanhã tu me passa uma visão que eu lhe digo”. Ou então: “Vamos pro forró no Bento?”, e a resposta: “Mais tarde te passo uma visão pra confirmar”. Até o padre resolveu aderir à praticidade. Quem não podia ir à missa no domingo tinha a chance de assisti-la numa visão. Bastava pensar no sacerdote e pronto, lá estava a imagem da celebração. Inclusive, as confissões via jóia também se tornaram freqüentes.

Outra que logo se adaptou à novidade foi a “putinha da venda”. Elaborou um útil serviço de entrega chamado “Visão Rápida”. Quem quisesse comprar algo passava uma visão e logo tinha as compras entregues por um ajudante da moça.

Com o tempo, as pessoas de Água Santa passaram a sair pouco à rua. Viam-se apenas nos eventos sociais – missas (vazias), forrós (poucos), futebol (raro) –, indo ao trabalho, ou nos serviços de entrega que seguiram modelo no sucesso do “Visão Rápida”. Não que os moradores deixassem de se relacionar, mas faziam isso quase que exclusivamente pelas visões. Alguns nunca haviam conversado antes e passavam a ser grandes amigos através da jóia. Outros começavam a namorar. Havia ainda aqueles que ficavam horas e horas da madrugada passando visões, quase viciados. Assim, a Pedra do Olho Divino tornou-se um utensílio indispensável aos moradores, pelo menos uma era certo de se encontrar em qualquer residência.

Mesmo depois de todos terem suas jóias, Pedro Pitanga e a esposa-sócia, que passou a ser chamada de Dona Pitanga, continuaram lucrando muito: as pessoas começaram a comprar para presentearem parentes distantes; alguns adquiriam grandes lotes e revendiam em outros povoados; a diocese solicitava encomendas a fim de difundir a missa via visão para vilarejos mais afastados... A Pedra do Olho Divino estava saindo de Água Santa e conquistando o mundo. E foi justo nessa época que se iniciou a decadência do povoado, começando por um assassinato brutal idealizado pelas mulheres do lugar.


Além do casal Pitanga, quem mais lucrou com as mudanças foi a “putinha da venda”. O que parecia estranho era como a moça ganhava tanto dinheiro se as vendas eram as mesmas de antes, com a única exceção de serem entregues em casa. E quem descobriu o mistério foi justo Dona Pitanga quando, numa madrugada, flagrou o marido no banheiro admirando sua jóia. A pedra mostrava a visão da “putinha” nua, fazendo uma apresentação erótica. A reação da mulher foi sair em busca de seu facão, mas Pedro Pitanga a segurou, implorando:

- Pelo amor de Deus, mulher, eu posso explicar.

- Explique, teu cachorro! Explique, que depois eu lhe enfio o facão no rabo!

- Se acalme! Eu não tenho nada com a moça, não... Era só uma visão.

- Ah, então, era só uma visão, teu filha-duma-égua! Vamos, continue a linda explicação – falou, irônica.

- Escute, vou lhe falar a verdade. É que a moça faz essa apresentação pra ganhar uns trocos a mais. Uma vez por semana, ela combina um horário e cobra uma taxa dos homens para se apresentar. Mas, não é maldade, só está ganhando seu dinheiro...

- Não é maldade?! – fez uma expressão macabra – Olhe, tu não vai dizer nada do que aconteceu aqui pra essa desgracenta e nem pra ninguém. Continue vendo tua apresentação. E, semana que vem, não deixe de assistir também. Vai ser muito melhor...

- O que tu vai fazer mulher? Deixe de bobagem.

- Vou voltar a dormir. Se tu abrir a boca pra alguém, eu lhe capo – falou, tranqüilamente.

O esquema das apresentações era conhecido por todos homens de Água Santa. Eles pagavam semanalmente para verem a criadora do “Visão Rápida” em meia hora de nudez. O acordo era que todos contribuíssem, “para ajudar a moça a sobreviver”, como diziam. Se um só não pagasse, a mostra era cancelada. Acertaram uma estratégia de só verem a visão no banheiro, para que nenhuma mulher descobrisse. E assim vinha acontecendo há um bom tempo.

No decorrer dos dias, Dona Pitanga combinou com as outras moradoras de dar fim à história. E, na madrugada da semana seguinte, enquanto todos homens encontravam-se em seus banheiros, as mulheres se levantaram em silêncio e saíram à rua para se reunirem na casa da “putinha”. Portando armas, invadiram o quarto da moça e improvisaram uma mostra erótica grupal. Depois da moça ser violentada com cabos de enxada e facões enferrujados, uma a uma as mulheres iam arrancando-lhe pedaços e mostrando para a jóia. Nenhum dos homens teve coragem de atender aos gritos de socorro da jovem. Só o que faziam era continuar assistindo a visão, chocados. Meia hora depois, voltaram para suas camas, já com suas mulheres nelas, dormindo (ou fingindo dormir). Em vão, tentavam adormecer, enquanto, lá fora, as chamas queimavam a cena do crime. No dia seguinte, nem elas nem eles tocaram no assunto, mas todos se mostraram muito espantados com o inexplicável incêndio que acabou com a casa da próspera moça.


Depois dessa morte, a jóia já não era mais vista com bons olhos. As pessoas perceberam que podia ser usada com más intenções e, com isso, trazer desgraça ao povo. Contudo, essa nova opinião não impediu que lutassem para defendê-la quando um fazendeiro ambicioso quis reivindicá-la. O homem chegou dizendo que aquelas terras eram dele e que, por conseqüência, a mina da jóia também lhe pertencia. Foi quando começou o que, posteriormente, ficou conhecida como a Guerra da Pedra.

Pedro Pitanga ficou indignado com a história do homem desconhecido e convenceu toda Água Santa de não cair na conversa. O fazendeiro não se abalou e prometeu voltar com reforços. Em uma semana, Pedro já havia armado todo o povoado, deixando todos preparados para as piores provações. A todo custo, iriam defender a Pedra do Olho Divino, já considerada seu patrimônio cultural.

A Guerra da Pedra foi sangrenta, com vários mortos de ambos os lados, porém, os abatidos de Água Santa eram mais numerosos. Ao término de três dias, os homens do fazendeiro foram expulsos, mas, a um preço muito alto: Pedro Pitanga morrera na frente de batalha.

Todo o povoado chorou a morte do “grande benfeitor”. E muitos, de tão abalados, resolveram fugir para não acabar como o pobre homem. O padre, intervindo, alertou da inutilidade da guerra e disse não ficar para ver o seu final.

De fato, a Guerra da Pedra não havia acabado. Os sobreviventes tinham certeza de que, quando o fazendeiro voltasse, seria com força total. “Mas, como continuar sem Pedro Pitanga?”, era o que se perguntavam. A resposta veio da reincidente viúva, Dona Pitanga. A mulher amava aquele lugar, foi nele que fez sua vida, não iria deixar quem quer que fosse tirar o que lhe pertencia. Depois de um discurso inflamado, falando de patriotismo, de dignidade, de honra à alma do marido e da preciosa Pedra do Olho Divino, conseguiu convencer os poucos que restaram (que não chegavam a quarenta, juntando mulheres e crianças) a uma última e heróica defesa de suas terras.

Poucos dias se passaram, como um curto período de trégua, até que o povo de Água Santa avistou seu novo inimigo. Era de se estranhar que os poderes governamentais ainda não tivessem se importado com a jóia. Mas, quando resolveram agir, foram decisivos. O exército chegou com tanques e canhões. Vários soldados já se colocavam em posição de batalha. Pelo megafone, o comandante informou a situação: “Em nome da prosperidade do país, estas terras serão desabitadas e isoladas. O local se tornará uma área de pesquisas científicas com acesso restrito. Caso os habitantes não cooperem, temos ordem para abrir fogo”. As palavras inflamaram o coração de Dona Pitanga – nunca sentira tanto ódio, nem mesmo das safadezas dos falecidos maridos. Decidiu que Água Santa seria seu túmulo.

A cena derradeira foi única: homens, mulheres e crianças, portando armas, corriam na direção do inimigo. No peito de cada um, brilhava a Pedra do Olho Divino. À frente, Dona Pitanga comandava o avanço erguendo seu antigo facão. O megafone avisou: “Se continuarem, abriremos fogo”. Não pararam. “Parem agora ou atiramos”. A resposta veio da líder: “Povo de Água Santa, em frente, por nossa jóia!”

O massacre foi consumado: últimos rebeldes mortos; poucos do exército feridos. Enquanto tiravam os colares dos corpos, grandes máquinas começavam a demolir as casas. Em poucos dias, não se via mais nenhuma construção, apenas uma grande área desmatada tendo uma brilhante rocha sobressaindo na superfície. Água Santa foi dizimada e, no seu lugar, construído um grande laboratório. As pesquisas procuravam desvendar o funcionamento da Pedra do Olho Divino, a fim de desenvolver novas tecnologias para a indústria de comunicação. Algo de que Pedro Pitanga, como um homem de mente científica, se orgulharia.

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