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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O DEDO

Nasceu num dia comum. E sendo, como o momento em que veio ao mundo, prosaico, cresceu um tantinho de cada vez achando a vida esplendorosa. 

Durante uma brincadeira com seu irmão caçula, praticamente teve a ponta de um dos dedos do pé esquerdo decepado. Sangrou sobre uma pequena ponte de madeira velha, que cruzava a vala em frente a casa do vizinho. 

Primeira lição: a vida pode ser vermelha, mesmo que ninguém veja a poça no chão.

O dia transcorreu enfadonhamente; ele ficou sentado no sofá com o dedo enfaixado por uma vizinha para não cair. Quando seus pais chegaram do trabalho, exaustos, ainda tiveram certa paciência: o pegaram pelas mãos e o levaram para a Santa Casa. 

No hospital, o médico riu do ferimento que já não sangrava e perguntou como foi que ele tinha feito aquilo. Tímido, ele relatou sua estripulia. A sala se encheu de estudantes para presenciarem a cirurgia de pregação de um dedo que nunca mais seria o mesmo. 

Ele pediu para o pai ficar na sala. Não haveria anestesia. Linha e anzol costuraram o dedo decepado e os adjacentes. Resultado: onze pontos e um dedo torto para o resto da vida, com a unha crescendo desconformada com as demais irmãs.

E a segunda lição: a vida pode doer, mas ainda é possível continuar vivendo.

Então cresceu, acreditando que, apesar de dores e amores, a vida era intensa e bonita. Não foi feliz, nem infeliz. Era contente, meio inseguro-seguro, meio triste, meio alegre, como é próprio daqueles que desde sempre derramaram o sangue de suas veias para sentir a vida batendo a porta, para o mal ou para o bem.

Descobriu uma paixão: o teatro. Passou a encenar a vida que vivia ou não. Sua satisfação era garantida. Se não vivia, sentia através dos roteiros; se vivia, melhor interpretava as peças que encenava.

Terceira lição: a vida era o palco do teatro, o teatro o palco da vida.

Um dia, apaixonou-se. Não, amou de verdade. Tão forte e tão fraco que sabia que esse sentimento iria durar por toda sua vida. Foi correspondido. Acreditou que nada mudaria, embora pudesse sofrer alterações, como os textos de dramaturgia.

Sorrisos, afagos, tristezas, carinhos, gritos no ouvido, verdades escapando de lábios. Descobriu que a vida não era teatral na maioria das vezes. Aquilo que poderia durar, acabou tão rápido-lento como se fosse vendaval.

Quarta lição: a vida é mais teatral do que se espera e, às vezes, sangra tanto que o coração não suporta e morre afogado.

Seu teatro interior recobriu-se de uma espécie de luto fumacento que ninguém via. Continuava praticando a comédia da vida, enquanto sua vida virava uma tragédia escondida.

Um dia, por descuido, rasgou a pele frágil do dedo quase decepado, embora recosturado no seu pé. Sangrou sem emitir um som. Foi consertado em casa mesmo, sem ter alguém que o levasse pelas mãos ao hospital. Mas não se podia negar a gentileza de quem lhe cuidou. 

Ele seguiu em silêncio, grato pela ajuda, mas esperando que o dedo infectasse e caísse de vez. Se nunca tivesse semi-amputado o dedo na infância não teria aprendido tantas lições, contudo, seu coração estaria intacto.

Continuava atuando, mas já não era mais o mesmo. A comédia virou seu drama, o drama ele tornou cômico. O público vaiava. Ele sorria, chorando lágrimas de brilhantina na coxia, enquanto esperava o povaréu deixar o local para não ser alvo de ovos, alface e tomates.

O que deveria fazer? Não conseguia se recompor! Sua inspiração havia virado pó quando a realidade abriu sua janela, num um dia de lua chuviscante, e ele descobriu que estava sozinho, porque a solidão essa nunca o havia deixado, mas estar sozinho, isso sim era meio estranho.

Quinta lição: nunca deixe sua vida atrapalhar sua profissão.

Enquanto isso, o dedo fingia sarar, e ele começou a sentir que seu coração estava esquisito, meio quebrado. Parecia se locomover por seu interior. Às vezes o ouvia batendo em seu cérebro, às vezes em seu peito, às vezes, em seu estômago. 

E no estômago descobriu uma paixão meio esquisita, muito intensa, que aplacava um pouco o estar sozinho. Mas nunca ia admitir que a sentia, nunca iria revelá-la, nunca iria senti-la completamente. Nunca, nunca se permitiria tocar naquilo que mais almejava. Era fiel até a sua dor.

Mas susto mesmo tomou quando sentiu o coração batendo na panturrilha da perna. Pior foi descobrir que ali havia uma bola, deslizando devagar e sempre em direção ao seu pé. Uma bola que palpitava, e, às vezes, emitia um ruído baixo, de fome ou de dor, de alegria ou de tristeza. Não sabia dizer qual era. 

Colocou a mão sobre o peito. Não sentiu nada. Bateu na caixa torácica. Estava oca. Estava totalmente oca! Somente os pulmões e as costelas estavam ali e isso para manter a estrutura de um corpo que já não parecia o seu. 

Aquela ‘batata’ na sua perna era mesmo seu coração, teve que aceitar. Sentiu que ia gritar, mas estava no teatro. Levou as mãos à boca, trancou o rugido e encenou a peça sem a mínima emoção. 

Infelizmente, não havia mais como recuperar sua bomba sanguínea. O público quase o linchou. Ele correu para a coxia e saiu tropeçando nuns fios que percebeu estarem aparecendo em seus braços, pernas e cabeça. 

Voltou correndo para casa. Quer dizer capengando, porque a perna doía, o pé doía e o dedo reclamava: de fome, uma fome abismal.

Quando entrou na casa, arrancou a calça, o sapato, a meia e sentiu a bola escorregando para a planta de seu pé. Sentou na poltrona que usava para decorar seus textos ilusórios, sabendo que eles nunca mais seriam lidos com tanto prazer ou desprazer.

Jogou a perna adoentada por sobre a boa e examinou a bola apalpando sua circunferência. Não era possível negar, ia perder o coração, pensou com uma dor vazia. Resolveu examinar o dedo machucado também. 

Ele havia cicatrizado, mas no lugar do rasgo haviam surgido dentes e uma boca. Essa se mexia como se quisesse comer ou vomitar. E ela vomitou, um líquido gosmento rosáceo primeiramente, em pequena quantidade.

Depois ele sentiu uma cãibra na perna tão forte que, em vez de encolhê-la, teve que esticá-la. Quando fez esse movimento involuntário o coração saltou para fora, pela boca daquele dedo morto-vivo, de onde escorreu um tantinho de sangue e água em abundância. 

Ele nunca mais sangraria normalmente.

O coração ficou pulsando fracamente no chão, enquanto ele observava estupefato e tomado de medo: um medo primitivo, misturado com um alívio pós moderno, futurístico até.

O dedo carnívoro queria alcançar o órgão expelido. Queria devorá-lo, devorá-lo vorazmente, sem dó e piedade. ‘Quem mandou essa porcaria me deixar na mão, enjoado e me fazer vomitar e sangrar. Não serve pra nada, nunca serviu. Sempre soube que só daria um bom caldo’, ele ouvia, dentro de seu cérebro, o dedo xingar com uma fúria bestial.

Mas ele não deixou que o dedo vivo-morto alcançasse o coração sangrento de água, porque sangue já não tinha mais nas veias. Agarrou um pote de vidro e colocou dentro aquele coração descompensado e renegado por seu corpo, tratando de tomar os cuidados necessários para garantir a preservação do mesmo. 

“Pode não servir para nada, mas daí a ser canibalizado por nós...”, raciocinou mentalmente com o dedo psicótico, que se acalmou e resolveu viver sua vida de dedo personalizado dentro das condições do corpo que o carregava.

Após essas precauções com o órgão inútil, ele calçou seus sapatos velhos, escondeu as cordas que nasceram em suas pernas, braços e cabeça em meio às roupas fora de moda que vestia e retornou a passo para o teatro.

Não sentia mais pressa, suprimiu qualquer desejo, a dor desapareceu no vácuo. O peito ficou oco, mas o cérebro compensava tal situação, conduzindo bem seu hospedeiro pelas vielas que precisava percorrer até chegar ao local de entretenimento em que exercia sua arte.

Despido de qualquer humanização, na noite seguinte realizou sua melhor performance. O público riu, chorou, aplaudiu, ovacionou o artista sem coração, entretanto, repleto de disfarces, tanto que pediu bis e jogou rosas vermelhas em direção ao palco. Ele fez mesuras, agradecendo aos fãs, atirou beijos para a plateia e seu sorriso tão amplo quanto baço cativou velhos, adultos e crianças.

Por fim, ele refugiou-se na coxia. Ali libertou seus membros do cordame de marionetes que agora sustentava seu corpo transido. Deixou seus restos amorfos caírem num canto qualquer daquele lugar esfumaçado, mas agora silencioso. Seus olhos foram lentamente perdendo o brilho que tanta atenção captou das pessoas durante a encenação.

O teatro passou a ser seu refúgio-casa-prisão; sua vida e morte. O coração continuava protegido num receptáculo quase inquebrável e o encéfalo prosperou, criando e reproduzindo sentimentos, como só um embusteiro mascarado consegue.

Às vezes ele ainda ouvia o dedo resmungando sua fúria e fome, querendo devorar pássaros, insetos, folhas ou carne. Mas descobriu como acalmá-lo, embora fosse um segredo inconfessável. 

E todas as noites ele renascia, com seus cordames, para levar sensações frias para as massas arredias.

Por fim, adquirira o último e imprescindível aprendizado: se não podia suportar a realidade, vivia a quase felicidade da perversa fantasia.

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6 comentários:

Achei fantástico em todos os sentidos! =)

Muito obrigada Suellen Rubira. Modestamente, creio que foi um dos meus trabalhos que mais gostei nos últimos tempos. Abraço.

Muito criativo, querida. Gostei muito! Feliz ano novo. Bjs

gostei muito
ontem, escrevi um comentário, mas perdeu-se...
(e num texto tão bom, modifique a frase final aquele rimado do podia... vivia... fantasia)

Obrigada Maria de Fátima pela leitura e pelo comentário.
Abraços.

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