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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

COTIDIANO

                                             

                        COTIDIANO
                                                                                                        Cecília Maria De Luca

Todas as manhãs, acordo com meu vizinho tocando piano. O vizinho e seu piano fazem parte do meu cotidiano. Saio para caminhar e encontro a faxineira do prédio com seus olhos tristes e seu pano. Ela e seu pano, que também fazem parte do meu cotidiano, costumam vir tomar café comigo. Antes, era dona Cecília, depois Cecília e, agora, Cecilinha. - “Luzia, cê tem luz no nome, mulher, porque não ri mais?” - “Qié que posso fazer, Cecilinha, eu não sou da alegria, sou da tristeza” - Engulo em seco. Sigo pra caminhar com a faxineira perguntando: - “Cadê o “bonéu”? O sol tá forte...” - “Carece não, Luzia, gosto do sol entrando pela minha cabeça” - “Não à toa é tão alumiada” (adoro o elogio).

Coloco o ipod e vou de Vivaldi que me remete ao pianista de semblante melancólico, concertista famoso. Será que também é da tristeza? Tristezas diferentes, penso. O pianista tem a tristeza do artista, a faxineira tem a tristeza da vida. Engraçado, nunca o convidei para tomar café.

No caminho da Praça, cruzo com o rosto suado do gari que varre a rua. Tento meu melhor sorriso e penso, faz parte da vida. Passo na casa do meu amigo que tem o corpo devastado pela doença. Amor antigo que se desmanchou numa rara amizade de conversas longas e cheias de proveito. Não mais. Agora não tem forças pra falar. Dialogamos mudos, por olhares aguados de despedida vagarosa. Pede com gesto um cigarro que acendo e fumo com ele. Beijo-lhe a testa cada dia mais funda, sabendo que vou perdê-lo em breve. Faz parte da vida, engulo em seco e me recuso a pensar nisso.

Volto suada e preparo meu banho, cheio de rituais que adoro. Acaricio meu corpo com cremes perfumados, mas sou interrompida pelo telefone. Amiga de longe, de longa data. Chora, falando coisas do filho sem emprego, aluguel atrasado, namorado que sumiu, de um nosso amigo com depressão séria. Tento pegá-la no colo, mas a distância não ajuda, então pergunto de quanto precisa e ponho na agenda: ligar para o amigo depressivo; passar no Banco depois do almoço.

O interfone toca. Paro de comer para atender. Outra amiga, com o pequeno “down” que puxa meus cabelos, me beija molhado e eu adoro. Comem a sobremesa comigo e, na despedida, fica o olhar cansado e agradecido da mãe quando lhe peço para deixar o pequeno comigo. Brincamos e, quando adormece, ligo para o amigo que me fala da depressão. Conto-lhe coisas engraçadas e fico aliviada quando consigo arrancar-lhe uma risada. Desligo, prometendo uma visita logo, anotando mentalmente que tenho que voar até lá na próxima semana, quem sabe.

Quando o pequeno acorda, dou-lhe um lanche e o levo comigo ao Banco. Quando o deixo em casa, exausta confesso, a amiga me olha daquele jeito de novo e, engolindo em seco, penso que faz parte da vida.

Ligo para o meu filho para saber do seu dia. Percebo a ansiedade nas dificuldades com a profissão e com os filhos pequenos. Coisas que tem que viver e, na impossibilidade de ajudar, torno a engolir em seco. Faz parte da vida.

Seis horas da tarde, é hora de ler o Poeta no face. Leio o poema que me deleita. O piano do meu vizinho silenciou faz tempo. Ligo o som bem alto e me ponho a conversar com Deus. Antes rezava. Hoje, sinto dificuldade de orações prontas. Conclui, faz tempo, que pensar é rezar. Então penso. Penso nas imagens e notícias dos jornais que li hoje cedo, ao som do piano. Não que fossem diferentes das que ouço e vejo desde que me conheço por gente, um pouco mais assustadoras talvez, e me espanto com a minha ligeira indiferença. Uma frase de Schopenhauer me vem à cabeça: “Amar a humanidade é fácil, difícil é amar o próximo”. Peço-lhe desculpas por discordar. Para mim, a humanidade é muito abstrata. E as misérias do mundo são tantas e tamanhas que eu não saberia por onde começar. Isso é tarefa para alguém com a estatura de Deus. Acho mais fácil amar o próximo, palpável, visível. A mim, me comove muito mais o olhar triste da Luzia. O suor do gari que passa varrendo a rua, a dificuldade financeira de uma amiga que não sabe como vai pagar o aluguel no fim do mês, o sofrimento de um amigo com seu corpo devastado. A fase heroica que meu filho atravessa. A preocupação da amiga com o futuro do filho doente, a depressão do outro. Estas pessoas todas, de uma forma ou de outra, eu posso ajudar, justamente porque estão próximas.

Desligo o som, ligo a TV e vejo a Síria. Engulo em seco e desligo e falo: “Você aí em cima, você tá vendo tudo isso? Vamos fazer um trato? Você cuida disso tudo por aí que eu cuido do que está por aqui.” Busco um copo d’água porque desta vez secou tanto que não consegui engolir.

Ligo o note e penso: e se meu vizinho resolver se mudar?



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34 comentários:

Belissimo. A dor e a angustia nos leva as reflexões. Onde também encontramos a beleza. Não é Kafka?
Marcilio

Cecília, que honra ser sua amiga e poder sentir esse texto tão belo e verdadeiro! Como sempre profundo que reflete no coração! Um brilho intenso de sabedoria! Gratificante começar o dia assim ! Obrigada

É uma experiência deliciosa ler seus textos, Cecília. O que mais me encanta é a delicadeza de sua narrativa. Linda, linda crônica!

Imprimi seu texto, e sai para a sombra de uma sibipiruna. Acendi um cigarro. Reconheci o texto por ter lido antes, mas está diferente. Ali uma frase parece-me intrusa, e os intervalos entre a palavra “vida” que vai repetindo parecem ter a duração de vinte e quatro horas. Inocente até que se prove o contrário, eu amei seu texto. Parabém Maria, bom dia sempre.

Triste e real. Cotidiano de milhões que enfrentam suas angústias, esperando algo melhor.

Já conhecia, mas reler coisas assim é um prazer. Belíssima crônica! De uma humanidade revigorante. Leitura que desce de um fôlego.

Mais uma das pérolas da nossa amiga Ciça. Sim, a chamo assim, porque ao chamá-lá
Cecília, a estaria enquadrando numa grande porção da humanidade, que também assim se chama. Ciça é única, assim como a sua forma de ver e pensar o mundo, rezando-o.
<3

Ho aperto la tua pagina mentre tu ancora dormivi ma preso da un impegno non ho potuto commentare. La tua e una narrazione di vita che io conoscevo e raccolgo in essa il tuo desiderio di tanto amore verso il prossimo. Complimenti Cecilia.

Eu também já conhecia e foi um enorme prazer revisitá-lo! Que texto delicado e, ao mesmo tempo, tão intenso. Algo para guardarmos na alma, Cecília.

Tocante! Adorei o texto. Parabéns pela sensibilidade. Adoro suas crônicas...

Jean Marcel

Querida Ciça a cronica é muito triste, mas retrata sua preocupação e bondade com aqueles que lhe são próximos. Eu já a presenciei muitas vezes cuidando "... do que está por aqui". Não mude. Bj. Inês

MA RA VI LHO SO!!!!! Quantas engolidas a seco damos... Lindo e verdadeiro texto, linda amiga, isso, amemos o próximo, a humanidade é um todo muito complexo, se cada qual de nós amar seu próximo assim, pronto, a humanidade estará sendo amada por todos... Parabéns, mais uma vez lindo e sensível texto de uma alma que há muito aprendeu a amar como poucos! Bjos

Texto de pura sensibilidade. Quando li sobre Vivaldi, imediatamente ouvia em meus pensamentos alguns concertos para Violino ou Fagote que conheço. E como pianista só tenho a elogiar esse texto, com seus contrastes que para mim soaram como a harmonia requintada de um rococó do séc. XVII.

Seus textos são uma delícia! Cheios de luz!
E ainda bem que isso também "faz parte da vida"!

Obrigada, amigos e leitores, por tão carinhosos comentários sobre meu Cotidiano. Vocês capricharam tanto que restaram mais interessantes as respostas que a crônica-proposta. Estou profundamente agradecida pela leitura e generosidade de todos vocês.

Sim é a vida. E concordo contigo, amar o próximo é melhor. Belo texto, sem mais o que dizer para expressar a reflexão que me causou. Abraços.

É um verdadeiro "Cotidiano"... tendo a diferença de ser: Vivido por uma "Semente de Estrela" que na terna maturidade, sabe brilhar por onde passa e deixar reluzindo o seu brilho. Amiga Cecilia... siga semeando no teu cotidiano que com sabedoria... o transformou em oração. Deus te cuide com carinho e enfeite sempre a tua jornada de Luz e Paz. te gosto sempre... Donna Boris.

Adriane Dias Bueno, muito obrigada por sua leitura. O propósito foi mesmo causar reflexão sobre como ajudar o próximo. Que bom que o atingi. Abraços.

Donna, que deliciada fiquei com suas palavras! Obrigada, amiga, por tanto carinho. Te gosto sempre também. Beijão na sua alma!

Ao ler o jornal, sou informado acerca do sofrimento dos habitantes de uma determinada tribo da Somália. Tenho que imaginar essa situação, talvez me informar um pouco sobre a história do lugar e, então, me colocar no lugar daquele povo. Minha empatia é o resultado dessa reconstrução mental. Ao sair de casa, deparo-me com um mendigo. Nesse encontro face-a-face, a empatia manifesta-se diretamente. Não preciso imaginar nada; reconheço diretamente o sofrimento em sua expressão facial. Aqui, sim, engulo seco. A autora tem razão: nesse sentido preciso, amar o outro é fácil, o difícil é amar a humanidade. Parabéns.
Edilberto Silveira Garcia

Bingo, Edilberto Silveira Garcia! Não tenho o prazer de lhe conhecer, mas você pegou na veia! Obrigada pela leitura e comentário.

Quanta sensibilidade! Você sempre foi tão "alumiada". Seria tão bom se cada um fizesse seu pedacinho. Você já faz o seu nos premiando com essa maravilha de texto. Maria Nilce Bacic Simões Lopes




Regina Vieira

Eu também já conhecia este texto tão sofrido e delicado, que relata o cotidiano de alguém atenta aos dramas alheios, aberta aos aspectos depressivos da realidade que a muitos atemorizam. Sinto orgulho em ser amiga desta escritora sensível e talentosa.

Linda, Regina Vieira, obrigada por sua releitura, comentário generoso e por espalhar meu texto por aí. Obrigada, mesmo.

Cecília, você é uma artista ! O relato de seu cotidiano traduz sua sensibilidade e sabedoria ao desvendar a alma humana, atrelada à matéria, neste nosso mundo de tantas dores e dificuldades ! São as sombras que, opostas à luz, tanta beleza trazem às pinturas.Apreciei saber de sua predileção pela música, pelo som do piano de seu vizinho. De fato, momentos como estes diluem as tristezas, as preocupações.
Continue escrevendo, porque seu talento certamente também nos traz uma leveza para o dia a dia e para sair um pouco de tanta rotina.

Cleube Pereira, que alegria saber que você visitou a Revista! Obrigada, querida, por suas palavras tão generosas. Então você não sabia da minha predileção pela boa música? Sempre e sempre. O som do piano do meu vizinho é que torna leve o meu dia.
Um grande abraço, mestra!

Cecília,

Confesso que não consigo pensar em outra palavra do que "genial". Eu penso que uma bela escrita é aquela que passa a verossimilidade de um fato ocorrido, e a sua escrita, bom.., ela é mais do que uma verdade, pois eu acreditei e imaginei cada sílaba escrita por ti. Simplesmente uma obra prima. Senti seu engolir seco quando falou com Luzia ou quando falou ao telefone com sua amiga. Todavia, em relação ao telefonema de seu filho, não conseguir sentir esse mesmo aperto no peito, me coloquei no seu lugar, e senti um orgulho, pois é admirável, hoje em dia, atos heroicos. Herói não é aquele que salva dezenas ou milhares de pessoas por ter um dom, igual a Hércules. HERÓI é aquele que consegue se reinventar a cada dia em prol de uma vida melhor, principalmente, quando se trata de um pai de família.
Termino esse post dizendo: como é bom ler um texto magnífico, revigora a alma.
Um abraço

Claudio M. de Queiroz

Claudio M. de Queiroz! Você conseguiu me emocionar, sabia? Obrigada pela leitura e clara compreensão do texto. Fico aqui, boba de alegria com seu comentário que só me faz incentivar. Um baita beijo no seu coração!

Bela crônica da vida! A angústia do artista é a angústia das " Luzias", dos amigos, dos garis, dos vizinhos... parida na sua arte!

Márcia Oliveira

Parabéns Cecília,o texto é fabuloso,realmente toca a sensibilidade!
Mais um para ler e reler sempre.

Ao reler, não ler, encantada fico cada vez mais com a beleza, profundidade e sensibilidade de sua alma. Cada vez que leio qualquer coisa sua, mais lhe admiro, mais fã sua fico, juro! Quero prestar uma homenagem aos vizinhos pianistas, às faxineiras, aos garis, etc. Enfim, amiga, a todos que fazem parte do "Cotidiano" de TODOS NÓS, que nos fazem "ENGOLIR EM SECO", que nos fazem pensar: "FAZ PARTE DA VIDA". E, Cecília, minha amiga, pego carona com a Luzia: "NÃO À TOA É TÃO ALUMIADA". Parabéns! Beijo. Patrícia Andrade.

Marcia, Lauer, Patrícia, obrigada, queridos pela leitura, comentários e palavras carinhosas.

"O pianista tem a tristeza do artista. A faxineira tem a tristeza da vida". Só isso já valeu o dia. Muito bom!

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