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sábado, 4 de janeiro de 2014

Hipnose

- E agora, anunciou o mágico diante de uma plateia de trinta crianças e uns dez adultos, vou mostrar para todos vocês o poder da hipnose. É claro que nenhum adulto o levou a sério; mágicas são truques, ilusões, por mais interessantes e incríveis que sejam, mas hipnose é algo diferente.

- Algum voluntário?

Eu estava com mais dois amigos, também pais de crianças que estavam na festa de aniversário.

- Você! - apontou para mim. Dei um sorriso meio sem graça e comecei a me afastar.

Sou um cético. Creio na ciência, o que é uma contradição em si. Crença é crença; é sempre irracional, seja você crente em religião ou em ciência. Um dos meus amigos começou a me provocar: se eu sou tão racional assim, que mal haveria em fazer um pouco de graça? Bom, talvez a minha incredulidade se deva muito mais ao temor de que esteja, no final das contas, errado. Sou um Tomé pós-moderno: não vejo para não crer. Meu amigo, então, anunciou que, considerando que eu não tinha coragem para me apresentar, ele mesmo iria fazê-lo.

Lembrei-me que um colega da escola tentava aprender a arte da hipnose. Nunca acreditei nisso. Fazia questão de fingir que estava chamando alguém, estalando os dedos, só para irritá-lo, algo em que era muito eficiente.

Meu amigo, então, sentou-se em frente ao mágico. Fez-se silêncio.

- Olhe para o meu relógio. Olhe bem. Desligue-se de tudo. Agora relaxe...

Ele fechou os olhos. 

- Agora, quando eu disser três, você vai começar a latir... Um, dois, três!

Ele começou a latir. Não estava imitando um cachorro; apenas latia. Um humano que late - convenhamos, uma espécie cada vez mais comum.

Vi que sua esposa começou a ficar incomodada; provavelmente também não acreditava naquilo e começava a achar exagerada a encenação do marido. As crianças achavam tudo aquilo muito engraçado.

Mas havia algo de errado no olhar do meu amigo.

- Agora, quando eu disser... 

Neste exato momento, uma das crianças começou a falar, bem alto, algo ininteligível. Era bem pequena, certamente menos de dois anos; disse uma daquelas palavras próprias da idade, com uma infinidade de vogais, algumas poucas consoantes e nenhum sentido para nós.

- ... você voltará a falar...

E pela primeira vez, vi o arrogante mágico se encolher. Percebi uma expressão de horror. Deu tudo errado. Simplesmente, ele não sabia repetir aquela que seria a palavra para fazer seu voluntário voltar a falar. Meu amigo, aterrorizado, não parava de latir.

Logo depois, uma assistente anunciou que era hora de cantar os parabéns, e as crianças saíram em disparada para o salão. Do lado de fora ficamos eu, o mágico, meu amigo com a esposa e mais uns três ou quatro adultos. O mágico pedia sinceras desculpas, ao mesmo tempo em que se defendia; que a criança não deveria ter gritado naquela hora; que seus pais deveriam ter uma ideia do que ela tinha dito - ou querido dizer -; que iria fazer todo o possível para fazer meu amigo voltar a falar. Aquilo nunca lhe havia acontecido, em seus trinta anos de carreira. Parece que nem ele acreditava muito em hipnose.

Estamos tentando há mais de um mês. A cada final de semana, reunimo-nos, na mesma casa, tentando encontrar a tal palavra dita pela criança na hora do show de hipnose. Até agora, não fomos muito bem sucedidos; meu amigo não para de latir. Conseguiu uma licença no trabalho - curiosamente, ninguém havia percebido que ele não estava mais falando. Para piorar a situação, o mágico está exigindo dinheiro para nos ajudar. Descobriu um grande filão e hoje é extremamente disputado para festas - mas agora de adultos. 


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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
todo dia 04


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