Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Tapa na cara

Você se acha bom demais para trabalhar nas docas. Bom demais para trabalhar como lixeiro, gari, catador de bolinhas de golf ou segurança de micareta. Bom, boníssimo, até mesmo para comer no mesmo lugar que esses trabalhadores. Não, você não come em lanchonetes de esquina nem em barraquinhas montadas à beira da estrada. Assim como todos nós achamos, você também se acha bom o suficiente para um cargo melhor, onde pode usar roupas tão boas quanto sua educação.

Você se acha bom demais para conversar com alguém formado níveis escolares abaixo dos seus. Seu jaleco branco, seu paletó italiano, seu carro do ano, sua astúcia, tudo isso é bom demais para compartilhar com quem não é assim, tão bom quanto você. Tão bom, mas tão bom, que chega a doer. Seu conhecimento é bom demais para discutir questões sociais entre a plebe, você merece um colarinho branco e uma poltrona de couro para seu habitat social. Você precisa exibir e nomear livro por livro, precisa demonstrar e conversar em vocabulário impecável porque, afinal de contas, você é bom demais mesmo.

Sim, você é bom. É bom demais para jogar uma moeda na caixa do violão sendo tocado na esquina de sua cidade. Bom demais para ser encostado no ônibus por um desconhecido, perguntado sobre as horas por um ambulante de metrô e ser incomodado por vendedores no semáforo. Levante o vidro de seu carro antes que seja infectado. Feche a cortina de seus olhos antes que se sinta insultado pelos não tão bons quanto você. Deixe de ir à igreja porque você é bom demais para se misturar aos outros e ah, você sabe, entende de Deus bem mais do que qualquer um porque, oras, você é um cristão bom demais.

Você já se convenceu de que terá que conviver com tamanha bondade. É tanta bondade sua orar todas as noites, antes de dormir em sua cama fofinha, pelas vítimas de catástrofes naturais. Nossa, você é tão bom que chega a se emocionar. Tão bom que entrega seu suado R$1 para a caridade mais próxima. No entanto, toda bondade tem seu fim. Você é bom demais para abraçar um negro sujo que não tem onde morar. É, mandar para o abrigo dele um cobertor puído que você já não usa mais é bom o suficiente.

Você é tão bom, meu caro amigo, que se sentiu desconfortável com a expressão "negro sujo". Por mais que seja a situação da desventurada pessoa de origem africana, você é bom demais para assumir a si mesmo que seu mundo é uma bosta. Que as pessoas ao seu redor, tão boas quanto, permitem que a pobreza aconteça com seu próximo. Você é bom, demasiado bom, para descer de seu escritório ou de sua casa e dar a mão à palmatória. Apanhar, sim, porque errou. Em determinado quilômetro seu caminho se tornou bom demais para você se tornar um humano.

Share