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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O Baile das Vítimas

Revoluções são como meadas de lã. Antes que a ponta do primeiro fio encontre fim na dura carretilha, estendem-se metros de anos. Mas de que serve uma revolução se não para durar o tempo de desdobrar-se em consequências para as criaturas? A fúria de carnes sangrando pelas baionetas ou pela lâmina da guilhotina é apenas alimento das batalhas. Depois, bem depois de uma dor quantificada é que os homens recuperam pela razão os ideais que lhes serviram de causa.
Uma revolução é feita para derrubar costumes e, para sobreviver, é preciso atrever-se em novas práticas. Foi assim naqueles dias.
Eu tinha 14 anos e rompia o ano de 1794 em Paris. Minha mãe, Claire Dupont, tinha sido presa pelo Comitê da Salvação Pública sob a acusação de conspiração. Na verdade, sua única culpa era a de ser mulher de meu pai, executado um ano antes como inimigo da revolução. Nossos bens foram tomados, mas depois devolvidos, e eu vivia na propriedade onde nasci, com uma tia idosa de minha mãe.
A primeira vez que vi Madame Tallien foi quando ela estava sendo libertada. O prestígio político da controversa senhora tinha conseguido livrar da prisão, junto com ela, várias outras presas, inclusive minha mãe. O feito notável e a garra com que continuou a se empenhar em prol de outros condenados valeram-lhe a alcunha de Nossa Senhora de Thermidor. O nome Thermidor deveu-se ao local onde seu marido enfrentou, durante uma convenção, o temido Robespierre, impedindo-o de falar e, assim, conseguindo realizar o pedido de Madame Tallien: a libertação de muitos presos políticos. Da menina que se fizera amante do tio aos 12 anos à mulher que se tornava santa para os franceses, uma longa estrada tinha sido deixada para trás. A mim, isso pouco importava. Tampouco me impressionava a beleza hispânica da senhora que caminhou para a luz através dos portões da prisão dos Carmelitas. O encantamento de Madame Tallien estava nos cabelos.
Os tempos de revolução testemunharam uma atitude surpreendente das encarceradas. Para evitar que os carrascos arrancassem suas longas cabeleiras pouco antes da morte pela guilhotina, cortavam elas mesmas seus cabelos antes do momento no patíbulo, deixando-os como herança às famílias. Madame Tallien foi a primeira presa libertada depois desse costume.
A visão dos seus cabelos muito curtos extasiou tanto os olhos da minha adolescência que quase me esqueci que minha mãe vinha um pouco atrás. Ela também não tinha mais os longos fios que penteava com cuidado pela manhã, prendendo-os em coque, e à noite, soltando-os para dormir. Mas nunca a falta de moldura valorizou tanto uma tela. Eram mulheres diferentes aquelas que saíam das garras da morte de volta para nós. E o silêncio da pequena plateia reverenciou-lhes o sofrimento.
Tocada pela discriminação que as mulheres passaram a sofrer por causa dos cabelos curtos, Madame Tallien passou a usar os seus propositadamente cortados. Em pouco tempo, curvando-se à força daquela mulher, Paris se rendia a um novo modismo: o penteado à la victime.
Aqueles dias me enfezavam o espírito. Apesar de não sentir as privações como os mais velhos, irritava-me ter perdido a liberdade de caminhar por qualquer canto. A França se tinha mostrado para mim um país cruel e cínico. Os prazeres adultos se multiplicavam como escapes para outras repressões impossíveis de conter, mas para os jovens, como eu, restava quase nada.
Antes da revolução, as famílias da nobreza tomavam em suas mãos a realização de grandes bailes, e com as danças e contradanças entretiam a juventude. Muitos compromissos foram selados ao compasso de valsas ou minuetos, ou ao som de breves concertos onde os idosos dormitavam e os mais jovens cochichavam idílios.
Com medo dos tribunais da revolução, ninguém mais abria os salões para ostentar festas. E a juventude enrugava-se no tédio de uma política que ainda não lhe pertencia.
Mas, como já lhes disse, uma revolução derruba costumes, substituindo-os por outros de maior ousadia. Foi com o fôlego da audácia que os jovens aristocratas parisienses descobriram os bailes públicos que podiam ser realizados nos salões dos hotéis. O Baile Richelieu foi o primeiro, depois foi a vez do Baile Thelusson, e em pouco tempo as festas nos hotéis se tornaram conhecidas e almejadas por toda Paris. No entanto, durou pouco o nome do Baile Thelusson. Janeiro de 1795 trouxe dias de inverno branco e noites de escandalosos acontecimentos.
O Thelusson abria suas portas para mais uma festa grandiosa. Minha mãe e eu nos encontramos com uma amiga e seus dois filhos ainda nas escadarias e a conversação era descontraída. Os cabelos ainda curtos das duas já não chamavam a atenção das pessoas, embora a suntuosidade dos trajes se ressentisse da ausência dos penteados em cachos. Pouco depois que nos instalamos no salão, um rebuliço chamou a atenção dos presentes.
Madame Tallien, na altivez de seus cabelos curtos e escovados para trás, entrou no salão de baile trajando uma túnica em estilo grego de tecido fino. Os pés, descalços, estavam trançados com fitas vermelhas. No pescoço, sem qualquer vestígio de joia, uma gargantilha fina e irregular, também vermelha, imitava um fio de sangue.
A reprodução das roupas das mulheres condenadas a caminho da guilhotina causou uma comoção sem igual. E nos olhos de Madame Tallien brilhou o regozijo pelo impacto do ardil.
Coincidira que, pouco antes dessa pantomima, um cavalheiro desconhecido havia pedido permissão a uma senhora para dançar com sua filha. A senhora declinou o convite, repreendendo-o por solicitar a dança à filha comprometida.
— Mas maman, eu não sou comprometida! — sussurrou-lhe a mocinha.
— Eu sei, menina, eu sei, mas logo haverá propósito em minha atitude.
E, dito isso, dirigiu-se até uma senhora, cujo marido também tinha morrido um ano atrás, pedindo-lhe que o filho dela dançasse com a sua filha. Estando já o par nos primeiros passos no salão, a mãe da moça dirigiu-se aos que estavam mais próximos e estranhavam o acontecido:
— Pensam que é soberba eu ter declinado do pedido daquele outro cavalheiro? Pois não é. Minha filha é órfã da revolução. Porque pelas mãos do carrasco morreu o seu pai na guilhotina. Eu mesma estive quase lá para ser executada, tão próxima do verdugo que não fosse a piedade de Madame Tallien não poderia retornar à vida. Acaso é insano querer que minha pequena só dance com outro órfão, com o filho de alguém cujo sangue também cobriu o cadafalso? Ou será que apenas sobre os ombros de Madame Tallien devem pesar os grandes gestos?
A intensidade da proposta contaminou todos os grupos no salão e rapidamente a dança dos dois jovens, bem como a de outros pares que se formaram à semelhança, recebeu a alcunha de Contradança das Vítimas.
Nunca mais Thelusson teve seu nome à frente das festas que abrigava. Daquela noite em diante, toda Paris passou a conhecer o Bal de Victimes. E à medida que o tempo passava, mais e mais as contradanças e outros comprometimentos só eram permitidos entre os filhos e filhas de nobres mortos pela revolução.
Logo, mais um costume foi introduzido ao escândalo dos trajes de Madame Tallien, que agora eram comuns em outros convidados. Muitos jovens e adultos passaram a trajar-se de luto fechado para frequentar os bailes, ostentando, inclusive, a braçadeira em honra aos mortos. Ladeando os que se vestiam como condenados, afrontavam por meio desse desrespeito aos ritos aqueles que não pertenciam ao grupo de órfãos. Com isso, horrorizavam de bom grado os cidadãos a quem viam como algozes indiretos de seus pais e maridos.
Não sei se eram tão superficiais em sua dor quanto lhes quiseram fazer crer, ou se apenas decidiram que cuspir o seu ultraje aliviava-lhes a agonia. Não sei se seu deboche era mesmo vil, ou se somente uma forma grosseira de representarem o único legado que possuíam. Eu ainda não era inteiramente uma deles, porque me faltava a coragem para as roupas e as atitudes. Mas descobri que não existe jeito de emprestar elegância ao sofrimento. Sobreviver é encontrar alternativas para preservar o espírito.
Foi assim que acabou por impregnar-me a política. Por meio de uma consciência ingênua, mas alerta, de que não havia igualdade ou fraternidade ou liberdade que pudesse advir de nenhum sangue derramado.
Eu sou Justine Dupont, parisiense, e tenho agora 15 anos. Esta tarde, cortei meus longos cabelos e os entreguei à minha mãe. Mas isso não importa. O que importa é ser uma órfã do Baile das Vítimas.Estou me dirigindo ao Thelusson, protegida do frio pela carruagem. E pela primeira vez entendo as palavras que o jacobino Camille Desmoulins publicou em seu jornal pouco antes de morrer: "Hoje, houve um milagre em Paris: um homem morreu no leito".
 
Imagem: Google Imagens / "Coiffure à la victime"
 
 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


7 comentários:

belíssimo Cinthia
uma escrita irrepreensível
para além do grito que ressoa em fundo e de que destaco: "Sobreviver é encontrar alternativas para preservar o espírito."
obrigada

Querida, muito obrigada! Estou tão correndo hoje (tinha a SAM e tem também o outro texto — que desta vez você entregou adiantado), que ainda não li o de ninguém aqui. O seu, o do José. Corrijo essa falha este fim de semana.

Sans cheveux... Isso foi outra revolução. E que herança!...
Impecável, como sempre!

Simplesmente magnífico e, para mim, elucidativo. Não sabia dessa passagem da revolução francesa. E sempre nós, as mulheres. Fascinante! Destaco também do seu texto esta passagem que reputo uma das melhores coisa que li ultimamente: "Mas descobri que não existe jeito de emprestar elegância ao sofrimento. Sobreviver é encontrar alternativas para preservar o espírito". Cinthia, você é demais!

" Sobreviver é encontrar alternativas para preservar o espirito ".
A quem o diz... Sou Português nascido em Angola, que passou por uma Guerra e que encontrou outra quando chegado a Portugal refugiado... Sei o que é ser olhado... Sei o que é ser Português ignorado... Sei o que é ser Português sobrevivendo em "alternativas
para preservar o espirito"... Texto muito incisivo, profundo, mas que se sente... Obrigado mais uma vez pela excelência da escrita...
Réjo Marpa

Réjo Marpa, me emocionei com sua trajetória. Respeito, entendo. Mais ainda de ver que você sobreviveu em meio a tanto preconceito e dor.

Presumo que se trata de ficcionar um caso histórico, talvez por exigência de um tema. O contexto é claramente percetível, ajudado pelo leve drama pessoal da narradora. Assim, seria fácil aprender História.

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