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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

DE TEMPOS E TEMPEROS






Minha avó era o que se podia chamar, em sua época, de mulher prendada: costurava, bordava, arrumava a casa, cuidava dos filhos, e, depois, dos netos, e... Cozinhava. E como cozinhava!...
Entretanto, sua maior habilidade, ainda que ela não soubesse, era como contadora de histórias. Apesar de sua pouca instrução – ela era do tempo em que as meninas eram retiradas da escola para aprender costura –, suas atividades cotidianas eram entremeadas por narrativas as mais diversas.
Nós passávamos o dia com ela, enquanto meus pais estavam no trabalho, e a necessidade de tomar conta de nós e de realizar simultaneamente as tarefas corriqueiras fazia com que nós ficássemos ao seu lado durante boa parte do tempo.
Assim, enquanto ela preparava o almoço, lá estava eu. Apesar de nunca ter aprendido a cozinhar como ela – e confesso que não tenho qualquer uma de suas aptidões domésticas, embora ela tenha, em vão, tentado me ensinar –, retive cada uma de suas histórias na caixa de guardados da memória.
Enquanto ela refogava o arroz e aquele aroma delicioso invadia a cozinha da minha infância, eu era brindada com alguma história. Não uma narrativa lúdica, daquelas de entreter netinhos, mas um causo, geralmente motivado pela atividade que estivesse sendo realizada naquele momento. Dessa forma, ouvi histórias sobre a menina que não queria comer e que em pouco tempo não conseguia ingerir mais nada, tendo sido milagrosamente salva pela aguinha do arroz, ou a da sopa de pedra, recurso utilizado pelo homem faminto, que punha pedras em uma panela com água fervente, e pedia, a cada passante, um legume para colocar na sopa, pois o gosto de pedra era muito ruim, conseguindo, assim, contribuições suficientes para um cozido completo.
A hora de lavar roupa já suscitava outra história, como a da criança extremamente pobre, mas tão asseada que, apesar de só possuir uma única roupa, punha-se a lavá-la à noite, para poder utilizá-la novamente no dia seguinte. Recatada, dormia enrolada em um lençol, mas não se furtava a andar sempre limpa.
Caso faltasse luz, já havia uma rodada de narrativas que enveredavam pelo sobrenatural. Arrepiantes para uma criança, sem dúvida, mas de longe as nossas favoritas.
Hoje percebo que suas histórias eram quase fábulas, e que a menina que as protagonizava representava um modelo – de higiene, de conduta, de obediência – que eu deveria admirar e, consequentemente, reproduzir. Mas isso era transmitido de modo intuitivo, fazendo com que a curiosidade nos fizesse implorar, desejosos, pela continuação.
Minha avó era uma espécie de Sherazade, com uma diferença: ela não dependia das histórias para sobreviver, mas via nelas algo fundamental à nossa sobrevivência. Ela me nutria o corpo com seus doces e quitutes, enquanto minha alma era alimentada com as fábulas, criadas ou não por ela.
Falando em fábulas, com A Raposa e as Uvas, aprendi a reconhecer o desdém característico daqueles que desejam algo que não podem ter; com A Lebre e a Tartaruga, aprendi, desde pequena, a trilhar meu caminho passo a passo, sem cantar vitória antes do tempo, e sem ser, jamais, tomada pela arrogância. Fazer as coisas respeitando o próprio ritmo e sem soberba, lições que carrego até hoje.
Hoje, quando me delicio com algo apetitoso, essa degustação vem acompanhada de nostalgia. Constato, então, que minhas guloseimas de outrora eram tão mais saborosas porque continham o tempero inconfundível daquela contadora de histórias.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


1 comentários:

Memória muito terna, agradável de ler, reconhecendo a grande sabedoria das avós em mistura subtil com a proverbial ternura.

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