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sábado, 3 de agosto de 2013

SOBRE TEMPO E MEMÓRIA


SOBRE TEMPO E MEMÓRIA

 
                                     “As peras, no prato,
                                                                                     apodrecem.
                                                                                     O relógio, sobre elas,
                                                                                      mede
                                                                                      a sua morte?”
                                                                                     (Ferreira Gular – “As peras”)

 
A maçã

apodrece

sobre a mesa.

 

A comida

posta à mesa

(que apodrece).

 

Tal qual

um homem

apodrece.

 

(Seu olho de vidro.)

 

A mesa

apodrece

sob a maçã

(aquela),

 

sob o prato

 de comida,

que também.

 

A madeira

apodrece

o interior da mesa,

antes.

 

E o homem

(o mesmo)

tem tremor nas mãos.

 

A fórmica,

revestindo a madeira,

solta-se em lascas.

 

(Como a pele

do homem.)

 

A comida

apodrece

na escuridão

no estômago.

 

(E o homem

regurgita

pássaros

calcinados.)

 

A memória

da maçã

já não traz

a mesa,

que não traz

a madeira,

que não mais

 

a árvore.

 

Esta

já não (se) lembra

(d)a floresta.

 

(Envelhecer

é só –

e sozinho.)

 

O homem

e seu dente de ouro,

sem sorriso.

 

A mulher

e seu colar de pérolas,

sem a festa.

 

Um e outro

e sempre sem

(e só).

 

Na memória

de ambos,

um que se foi

e outro nunca.

 

A mulher

reluta

em ser a maçã

(que apodrece).

 

E o homem,

a mesa

(que também).

 

(A madeira

corroendo(-se)

por dentro.)

 

A memória

(dela)

seca-se,

como a carne

da maçã.

 

Seca-se,

como os olhos

(de vidro?)

filtram

a desluz.

 

A memória

(dele)

sobe na mesa,

pula da árvore,

 

cai no rio.

 

Mas rio

já não há:

vazio espesso.

 

E o homem-

árvore

apodrece

                       longe

 

                                             da floresta

                                             de homens.

(Envelhecer

é só – 

e sozinho.)

 

Torna-se

refém

da memória.

 

Como a árvore,

da terra que

a sustém.

 

E a maçã,

da espada

que a corta.

 

A memória

é frio aço

de dois cortes.

  

Tanto fere

quem a cultiva

quanto

quem a ignora.

 

A memória

é lâmina

que divide

as horas.

 

Como a espada

trespassa a maçã

(sua carne

morta).

 

A memória

é substância

torta

se apodrece

dentro

de quem

a gesta.

 

Tal qual

a comida

(indi-)

gesta

os vermes

que a

devoram.

 

A memória

(presente)

esconde-se

em ausências

fortuitas.

 

Relógio

sem pêndulo,

marca o esque-

cimento.

 

A memória

paralisa

o tempo

 

(rio de matéria

putrefata).

 

Tenta

dissol-

vê-lo – unir

suas pontas.

 

Ou divi-

di-lo:

múltiplos

espelhos.

 

A memória

quer fazer-se

mesa

antes

de fazer-se

árvore,

antes de

floresta.

 

A memória

quer lograr

o tempo

no falso

de suas horas.

 

Já o tempo,

por seu turno,

não se dá

por vencido.

 

E separa
 

a madeira

                                           da mesa,
 
a mesa

                                           da maçã,

a maçã

                                           da mulher,

a mulher

                                           do homem

                                           (em gêneros

                                           e dores)

e o homem

                                           e a mulher

    
               de si mesmos.

 

O tempo

se-

para,

 

enquanto

prepara

o bote

no mote

do homem

(ou mulher)

 

livre

 

(como disse

o gênio

 torto)

  

: ser livre,

de fato,

é estar

morto.

 
 
 
Edelson Nagues
Do livro Águas de Clausura (Scortecci Editora).

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Edelson Nagues
(nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Na década de 1980 e início da década seguinte, em seu estado de origem, atuou na área musical, como vocalista e principal letrista do Grupo Reciclagem, tendo participado de vários festivais universitários e de festivais regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal, obtendo diversas premiações, inclusive como intérprete e letrista. Na época, funcionário da CEF, atuava como representante do então recém-criado Conjunto Cultural (hoje denominado Caixa Cultural) em Mato Grosso. Premiado e/ou selecionado para coletâneas em vários concursos literários, entre os quais se destacam: Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (2012, Ponta Grossa/PR), XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (2011, Santa Maria/RS), Prêmio Prefeitura de Niterói (2011), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” e XII FestiCampos de Poesia Falada (ambos em 2011, Campos dos Goytacazes/RJ), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (2010, Manaus/AM), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010), XL Concurso Literário “Escriba” (Piracicaba/SP, 2009). É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora. É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.
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