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terça-feira, 3 de julho de 2012

UMA TÉCNICA EXPERIMENTAL


Edelson Nagues 


Inspirado pela leitura de Ulisses, de James Joyce, quando participante de uma oficina literária no Ateliê Literário, em Brasília/DF (coordenada pelo Piero Eyben, atualmente professor da Universidade de Brasília – UnB), no ano de 2005, escrevi um miniconto, “Joyce in Sampa”, utilizando uma técnica experimental por mim desenvolvida. A boa receptividade por parte do coordenador e dos colegas – o que não deixou de me causar surpresa – incentivou-me a buscar o aperfeiçoamento dessa técnica, a qual, posteriormente, para cumprir exigência da Funarte, na apresentação de um projeto (e ante a necessidade de impressionar os avaliadores – o que acabaria se revelando inútil...), denominei com o pretensioso nome de “Técnica da Potencialização Morfossintática ou Vocábulo-Frasal”.  

Pretensões à parte, nesta minha estreia como colaborador fixo da Revista SAMIZDAT, gostaria de apresentar essa técnica aos amigos leitores, com o intuito de submetê-la à avaliação, quanto à sua sustentabilidade como tal, solicitar contribuições para seu aperfeiçoamento e divulgá-la, para que alguém mais capacitado, caso queira, possa fazer dela melhor uso.

Tal técnica consiste, grosso modo, na potencialização de cada vocábulo, fragmentando-o e evidenciando nele as demais palavras que o compõem, por meio do recurso da tmese (do grego tmesis, corte. Por ex.: “des/tino” = “destino” e “sem tino”; “en/canto” = “encanto” e “no canto”) e/ou por intercalação de letras (“co[r]po” = “copo” e “corpo”) ou de palavras (“fotogra(o outro não)fia” = “fotografia” e “o outro não fia”), implementado com o emprego de sinais de pontuação alguns dos quais pouco utilizados na escrita corrente (o colchete e a barra transversal, por exemplo). A técnica permite ainda a interpolação de frases, ampliando (combinada com a potencialização vocabular) os sentidos destas (“O/mar vê: [a] pres(s)a (de) entrar.” = “Omar vê: pressa de entrar” e “O mar vê: a presa entrar”), não se excluindo a criação de neologismos (“vasomito” = vomito no vaso; “sozinhando” = sozinha e/ou sonhando; “desespelho” = desespero [refletido] no espelho).

O prof. Piero Eyben, ao perceber certa semelhança com alguns recursos da escrita poética do norte-americano e.e. cummings (Edward Estlin Cummings, 1894-1962 – a grafia do nome, sugerida por  um editor, faz referência exatamente às idiossincrasias morfossintáticas presentes em seus textos), apresentou-me alguns poemas deste, para propiciar, por meio de análise comparativa, tanto aproximações enriquecedoras quanto afastamentos necessários. Até então, eu conhecia poucos poemas desse poeta, e todos escritos na forma “tradicional”.

Para que se constatem eventuais semelhanças e diferenças entre as duas formas de escrita, transcrevo, abaixo, no original e na tradução (ou “transcriação”) de Augusto de Campos, aquele que talvez seja seu mais perfeito poema (sem título, conhecido como “O haicai da folha que cai”). O próprio Campos o considera “uma das mais densas imagens de solidão que se conhecem”. De fato, são notáveis as repetições da unidade, em variadas formas, reiterando a temática do poema. Ei-lo, pois:
  
            l(a                                                                so 

            le                                                                 (l 
            af                                                                 f 
            fa                                                                 o 

            ll                                                                  l)l  

            s)                                                                (ha  
            one                                                              c 
            l                                                                   ai) 

            iness                                                            itude 


E, a seguir, três textos meus, escritos com o emprego da Técnica de Potencialização Morfossintática (mantenho provisoriamente esse nome, por falta de outro mais adequado). Observe-se que esta propicia ao leitor, em um único lance visual, divisar duas ou mais frases/imagens entremeadas (como em “O/mar vê: [a] pres(s)a (de) entrar.”  e em “Eu:  si[m]/g(n)o.”), o que provoca um efeito impossível (salvo em situações excepcionais) pela técnica de escrita convencional.
  
JOYCE IN SAMPA 

 Acordo ced[o]/(ento). O corpo [de] amar/(elado) arfa, nu/lo. Gira a cabeça gira o quarto gira o mundo gira. Maldito gim! Era r/um (?) ou outro r[u]im (dói). Um co[r]po d’á(gua): um porto. A mulher púbia em pêlo me ignoja. Dor/me. Eu [a] quero[,] (ir) embora. Meu desespelho se reflete no banheiro. Vasomito silente, des/ca(r)go. Saio pé-antipétala. Ela sozinhando (comi[go]?). Tropeço na sã(/Dália [me])dice. Talvez volte a ti[e]te(r). Rio de nós. Tal vez em que nos encontramos: des/tino. 
Saio à rua[,](:) rot[o]/(a). In Sampa. Carros carram, velhozes. Nuvens nuvem. Nu vem à (ca)beça. Pessoas pessoam: personas. Pés/sonham. Verbos vermem na mente.
A (c)idade não pára. Eu: si[m]/g(n)o.
Preciso [na]vagar, ir lá.

Anda.

  
SIMBIOSE 
  
O/mar vê: [a] pres(s)a (de) entrar.
No horizonte, [a]riscos[,] (de carvão ba)lançam-se(: b)arcos. [En]/canto d[o](e) ser/(eia). (A)trai[,] O/mar.
A onda anda a onda anda a onda anda a onda. Ao longe, [a]riscos[,] (de carvão:) corpos ao s[o](a)l, b(and)eira no cais.
A mãe (se des)espera. Nada. Grita: “O!mar!”
A onda anda a onda anda a onda anda a onda anda. Onde? “O!mar!” Nada. “Salvem!”
Sal vem: nos olhos de/la, na garganta de cá.
[A]braço(s) forte(s), luta de[s]/igua[l](is).
A mã(o)[e]: a[h!]deus.
Omar: o mar.

  
UM E OUTRO 
  
Compainha. Aten(de)[to]. O outro, de/vagar, entra. Di/vida pesada. Imóvel (, ele) [: penh]/ora. “Nada de(vo)/tenho.” A mulher d(e)[ist]/ante(s), filhos e netos id(os)[em]. “Vida di/fóssil”. “Sin/to. Tem comprov/ante?” “Du/vida de mim?” Pra lá/cá. “É (a)lei[go?].” A tinta no papel: des(futuro)[d]enha: o auto. A pasta – um tem/e o outro [, não]. Tira uma fotogra(o outro não)fia. “Meus netinhos... Não parecem (es)perto(s)?” “Pare/sim. A[s]/sina!” A mão n(a)[os] pa(sta)[péis]: o (medo) reci(proc)[b]o. Con/fere. O(ra um... ri o outro/)K! Levanta-/se[gue-o]. 
Sob ar(vore) dens[o](a). Uma folha cai...
Leva ao outro: tessitura de (galh)[/:n]inho(s). Beija-flor. “Raridade. To/ma(l)!” “Parece t(a)[o]nto. Se é raro...” “Tenho [m]/ais. Ave!/(s) são [a]mi[ga](nha)s.” “Sin/to. Não poss(uir/)o. É (a) lei[go?]!” 
Vai, sem vir/ar-se. Ao que fica: revolver. A mão na pasta acari/cia.

                                    _______________________

Por enquanto é isso, amigos.

Abraços e saudações literárias a todos!

 Edelson Nagues 

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9 comentários:

Oi, Edelson.

Muito interessante a sua primeira participação na SAMIZDAT.

Quando li Joyce pela primeira vez, aos 20 anos, fiquei totalmente deslumbrado pelo estilo dele e pelas experimentações da modernidade; inclusive cheguei a escrever uns contos bem ruins "a la Joyce".

Hoje, já questiono mais a eficácia deste tipo de experimentos (como os de Joyce ou Beckett), enquanto narrativas. São pouquíssimos os leitores (e quando digo pouquíssimos, refiro ao que caiba um micro-ônibus) que tem algum tipo de disposição intelectual para empreenderem o esforço interpretativo necessário.
Nunca conheci ninguém além de mim mesmo que tenha lido na íntegra "Finnegans Wake", por exemplo, e ainda "Skeleton Key to Finnegans Wake" do Joseph Campbell para tentar entender alguma coisa.
Talvez hoje eu não tivesse a mesma paciência...

Enquanto que possuem um valor como tentativa de expandir os limites da Literatura, acabam comprometendo a legibilidade e a inteligibilidade. Mas é óbvio que se trata de outro tipo de experiência de leitura.

Abraços.

Olá, Henry!

Obrigado por ter lido e pela oportunidade de divulgar meu trabalho na SAMIZDAT(e pelo favor de postar meu texto aqui, qdo eu é deveria tê-lo feito).

Concordo com vc qto a questionar a eficácia de tais experimentos. Tanto é que, embora tenha "descoberto" essa possibilidade há um bom tempo, ainda não me convenci totalmente de sua validade. Principalmente, como vc bem frisou, por exigir um esforço intelectual e mesmo paciência que geralmente o leitor não está disposto (ou não tem tempo mesmo)a despender.

Eu acrescentaria o Raymond Queneau entre os autores que enveredaram pelo experimentalismo e, embora alcançassem reconhecimento da crítica, praticamente não foram lidos pelo "leitor mediano" (sem nenhuma conotação pejorativa, mas apenas para diferir do "especialista").

Eu sou mais um que não leu o "Finnegans Wake". Tenho um volume, mas até hj não encontrei o tempo e a fórmula para iniciar a leitura. Mas não descarto a intenção de um dia me entregar a esse desafio.

Enfim, essas "invencionices" têm sempre como força motriz a busca de expandir a literatura e a linguagem. Talvez por isso não deixem de ter sua validade (eu aqui, tentando me convencer... rs).

Grande abraço.

Olá, Edelson,

Parabéns pelo belo texto! Muito interessante, tanto para quem pretende arriscar novos voos na prosa quanto na poesia. E encantamo-nos com determinadas palavras, ao perceber, pela etimologia, o sentido e lógica das partes que as compõem.
Um exercício e tanto, excelente para autores e leitores.
Não sei se vc conhece um grupo de poetas portugueses que inaugurou uma estética contemporânea denominada Experimentalismo, na mesma linha da nossa Poesia Concreta, com autores como Ana Hatherly e E. M. Melo e Castro. Acho que vc gostaria deles...

PS: Henry, foi vc quem postou o texto dele? e eu apanhando o fim de semana inteiro aqui do computador. Pedi até auxílio ao Domit, cheia de vergonha....rs.

Hahahaha! E eu todo constrangido por não ter conseguido postar...E já tinha solicitado ajuda tb do Domit e do Edweine. Como costumo dizer, sou "analfabeto digital funcional". Agora fiquei um pouco aliviado, Tatiana.

Eu assisti a uma palestra, com "performance tecnológica", do E.M. Melo e Castro, em 2000, na UnB. Achei interessante, diferente, original. Mas o concretismo não faz mto a minha cabeça, não.

Eu entendo que essa "técnica", que surgiu surgiu meio por acaso, dialoga de perto com a poesia do e.e. cummings mesmo. Seria como uma variante aplicável à prosa. O interessante é que eu a "descobri" antes mesmo de ter contato com os poemas do cummings escritos com a técnica parecida.

Obrigado pela sua presença e pelas sempre oportunas palavras, Tati. Abraço.

Um texto de estreia que nos apresenta uma verdadeira aula de Estilo, com as palavras de um escritor que sabe, pesquisa e aprimora sua Arte. Resultado: o sucesso. Parabens, Edelson, pelo texto lucido e de grande qualidade.

Obrigado por suas generosas palavras, Edweine. Vindas de um mestre como vc, adquirem um valor imensurável. Grande abraço, amigo, e sucesso cada vez maior em sua vitoriosa carreira literária.

Este comentário foi removido pelo autor.

Uma verdadeira aula, mesmo, que me deixou aqui, maravilhada.
Não consigo escrever poemas com essa "técnica" nem em mil anos! Percebo com prazer e admiração os que fazem isso com maestria, como vi agora que é o seu caso. É quando me convenço de que a prosa (à qual tanto amo) será meu amante eterno, enquanto que a poesia, a quem cortejo, está longe de se encantar por mim, por mais que eu a deseje.
Edelson, você e suas multifacetas, geniais! Você é um polvo, uma completude,sujeito!
Parabéns!

Obrigado por palavras tão gentis, Cinthia. Vou continuar me esforçando para merecer pelo menos 10% delas.

E cada vez mais eu é que descubro seus múltiplos talentos. Mestre na prosa, encantandora na poesia... E ainda se dá ao luxo de ser modesta.

Grande abraço (e sucesso na etapa final do concurso Autores S/A).

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