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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Maria e Maria

Nasceu uma 92 segundos antes da outra. As gêmeas univitelinas de Raissa e Robledo pagaram todos de surpresa, quem diria uma barriguinha tão murchinha caberem duas crias tão robustas, tudo preparado, um berço, um enxoval, um chocalho, camisinhas de pagão e cueiros para uma que agora são duas. Dos narizes arrebitados à choradeira tudo era absolutamente igual. Sincronizavam hora da fome e arroto, banhavam-se nas mesmas águas mornas da bacia, sorriam simultâneos bilus bilus. Até o cocô vinha na mesma hora, com a mesma coloração e consistência. Para encerrar as confusões, quem é quem, cara de uma focinho da outra, nem uma pintinha para diferenciar,
os pais receberam sinais dos anjos e trataram de obedecer chamando as duas de Maria.
Maria pra lá, Maria o pra cá. Assim vingaram sem identidade própria, sem vontades próprias, sem desejos próprios. 
Na escola, usavam a mesma carteira, escreviam no mesmo caderno, partilhavam da mesma merenda:
sanduíche de pão com goiabada, que apesar de um só, tinha o tamanho de dois.
Cresceram Maria e Maria pulando a mesma corda, ninando a mesma boneca, lambendo o mesmo pirulito. Rezavam o mesmo terço, recitavam as mesmas poesias, contavam as mesmas prosas, cantavam as mesmas modinhas, riam das mesmas piadas. Declamavam os mesmos versos nos saraus familiares, quando o tio beberrão sempre encerrava a salva de palmas com a mesma voz pastosa: “essa menina é um talento, até parece que é duas.”
Menstruaram no mesmo dia e assim foram mês a mês, um reloginho de precisão suíça de incômodos e tpms, nada que uma só gota de atroveran para aliviar o ardor de duas cólicas. Mocinhas, viram de a mesma janela o amor chegar. E ele bem que chegou de repente: Amaro, garboso forasteiro, elegante nos gestos e no vestir, encantou-se pelas duas, de uma só vez. Com a mesma corte, derrubou Maria e Maria com charme e lábia singulares. Raissa e Robledo faziam gosto. Resolveriam com um único mancebo despachar as meninas predestinadas, sem preocupações de dois genros intrusos
no dia a dia da casa.  E assim começaram os três a namorar. A calça de tropical inglês roçando as baias das saias rodadas nos encontros no portão fez crescer fantasia que pernoitava na cama das duas. Segredavam-se em duo com sôfregos gemidos, suores dobrados, queimações duplas pelos entre pernas. Tocavam-se irmãmente descobrindo as delícias do fogo divino e não se decepcionaram na noite de núpcias. Depois da cerimônia, onde Robledo conduziu Maria e Maria, uma em cada braço
aos braços de Amaro, sob a estranheza de dezenas de olhares, o trio nubente enfurnou-se num sexo veemente e compartilhado. O rapaz era um espetáculo. Dava conta das duas com a mesma intensidade, produzindo esplendores sem que ninguém ficasse devendo a ninguém. Pouco a pouco as meninas iam se transformando em sacerdotisas do gozo e da luxuria. Mitos católicos e cartilhas de bons costumes foram se esvaindo entre os lençóis, quando todas as formas de afeto e prazer
eram experimentadas e descobertas a cada seção. Dedos, línguas, narizes, cotovelos e calcanhares, o que houvesse de extremidades rijas eram bem recebidas por lábios, grandes, pequenos, carnudos, recônditas protuberâncias enrijecidas, úmidas e pulsantes, cavernas aconchegantes, orifícios diversos. Discretos, não proclamavam à vizinhança e à parentada suas proezas, cabendo às maledicentes de plantão duvidar da virilidade de Amaro, esquisito rapaz que se submete a este situação,
quem tem duas na cama, acaba por ter nenhuma, rezava a corrente da inveja. Mentira desdenhosa.
Tão logo correu noticia da gravidez simultânea de Maria e Maria, engoliram as Matildes a verdade de que o rapaz numa noite só teria aumentado com duas matrizes a população mundial. Nove meses depois, Maria e Maria pariram trigêmeos cada uma, três meninos, três meninas, para orgulho de Raissa e Robledo. Melhor impossível: criaram duas filhas como se fosse uma e agora a vida em progressão geométrica ofertava três casais de netos numa tacada só. Lembraram do sinal dos anjos quando a gêmeas nasceram, imbuindo o casal da missão de purificar a raça humana, fazendo de duas ovelhas um ícone singular da concórdia.
Mas nem tudo foi paz na vasta prole. Longe disso. Os anos se passaram e o a população da casa de Amaro, Maria e Maria virou um saco de gatos. Da harmonia desejada surgiu o transtorno opositor. Como anti modelo às duas mães monozigóticas, aos avós obsessivos e a um pai conivente, o sexteto desgovernou-se. Floresceu cada um com suas manias, fé, times de futebol, jeito de falar, caráter, personalidade, fraquezas, caligrafia, paladares, vícios, preferências políticas, musicais e sexuais.
Rixas de irmãos era pinto diante que os tempos aprontaram: litígios ferozes, brigas severas, ameaças e tentativas de morte. Adolesceram os seis como se estranhos fossem. Mais que isso: inimigos, como inimigos são os radicas étnicos, ideológicos, torcedores, sectários e religiosos mundo afora, como espelho do rosto mais perverso da humanidade. Corroídas de desgosto, Maria e Maria, num pacto sinistro, beberam do mesmo veneno. Estrebuchou uma 92 segundos antes da outra. 
As gêmeas univitelinas de Robledo e Raissa, co-esposas de Amaro, e ungidas com os óleos da extrema fraternidade, foram enterradas num mesmo caixão sob as vistas dos pais devastados e de um marido combalido. Nenhum dos seis filhos compareceu. Dizem que andam pelo mundo disseminando a discórdia, plantando o ódio, promovendo a intriga, cultuando a inveja, espargindo a soberba, o egoísmo, a injustiça, a avareza, o rancor, o ciúme, a barbárie e a crueldade. Foram além
das fronteiras do bom senso, regente do fato que são as diferenças que movem a existência, e vestiram os capuzes da intolerância.
Robledo e Raissa enlouqueceram nos porões de um manicômio, pregando aos quatro ventos que eram os mentores do apocalipse, arautos do pior dos mundos, logo eles, que tanto fizeram do ideal da igualdade o turbo da vida. E ainda hoje, Amaro, o duplo viúvo, vive correndo atrás da produção do Fantástico para contar sua história estapafúrdia. Só que ninguém acredita.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

bom conto! boa escrita! e sabe pq digo? pq a gente lê e nem despega e quase que sabe a fruta fresca o prazer da leitura

Obrigado, Maria de Fátima. Minha escrita é pensada para o leitor.

Muito bom, ZéGui! Imaginação tinindo! Que filhos estraga-prazeres!

Olha só, continuo não recebendo o link de seus textos. Vim hoje aqui porque lembrei do dia 20. Beijos!

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