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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sandrim Mata Galinha




Galinha gorda, galinha magra, galinha do pescoço pelado. Galinha viva no terreiro, galinha morta cabidela. Preta, malhada, d’angola, da pereba rosada no bico. Galinha degola, o corpo gira sem cabeça, pulando, morrendo, batendo asa pra fugir pro céu.

Sandrim afia o facão. O olho queima com a faísca do ferro. Pro céu a galinha não desencarna. Já tem estrela dando embora, já vem o nascente borbulhando. Sandrim fareja o calor do fim da noite e jura pelo amor de Vanessinha. Que a mão do Senhor pegue na minha, coração, bravura pela menina. Agora a noite é última. No sol que está pra subir, o bicho não canta seu cocorocó.
Vanessinha, filha de Seu Jacyr. Sandrim senta o pé no esmeril, faz força e morde a língua, raspa a lâmina até suar. Lembra dela na cachoeira, a única com coragem pra água fria. O pé descalço no musgo, o maiô preto coladinho. Sandrim de cima, viu o banho escondido na pedra. Me permita dormir nesse peito, meu Jesus, garota mais linda - salva um aconchego ali pra mim.
Vanessinha agora no hospital. Esporada pelo bicho, desacordada, remendada com esparadrapo. Pinga soro na UTI, seu coração pi pi pi. O quarto tem vaso de flor, faz o que pode o doutor - sua vida quem deseja é o Senhor. Sandrim enfia a paixão na aço da faca. Vanessinha, vou cobrar do monstro por você.

Frango frito com farinha, alegria salpicando especiarias. Se eu te conto, quem acredita, na fábrica dos Frangos Rica. As galinhas chegam em caminhões, as gaiolas empilhadas, crueldade, as aves de cima cagando goteira nas de baixo. Pregam os bichos na máquina, os pés presos na corrente. Gira a lâmina que mata, escalda o vapor que depena. Vão cortando os picadinhos, que delícia, o galeto na sua mesa.

Assombração do além mundo, parte homem, metade frango, pena por completo. Padre Rosário diz que nasceu dos pretos. Macumba feiticeira, par de vela vermelha. Sacrilégio na encruzilhada, galinha, farofa e cachaça. Vive a cidade de porta fechada, a pracinha suja de folha, o sol na fresta da janela. Correu o pipoqueiro, tem medo o padeiro, cava fundo o coveiro – o terror fincou na roça pra morar. E o Senhor, desperta Pai Protetor, acode nós do pesadelo. Pois de longe no poleiro, na morada perdida, o bicho cocorica – vocês são minhoca pra minha bica.
Atacou primeiro um galinheiro. Foi NháNácia alimentar a granja, de balde e felicidade, mugido e passarinho - manhã morninha por direito. Calou a cantiga, derrubou a comida, a barriga escorre gelada. Misericórdia!, a galinhada toda despedaçada. Abana a dona, traz água com açúcar, anda!, ache o delegado que é crime pra autoridade. A tela de arame rasgada feito papel, o cercado de madeira, pedaço do telhado espalhado. E as pegadas da galinha, três dedos da pata fina, gigante, grandona, mais longa que duas botinas.
Galo macho, fêmea galinha, o monstro tinha a garra do pior. cucurucu. Dia que o sol chega vermelho, - sim, depois de apagar a lua cheia, o cagaço desliza cobreiro, socorro, dá friagem no pé da espinha. cucurico. Treme vidro e tábua solta, a cachorrada se esconde pra debaixo. cacarico. Pelo roçado, pelo matagal, na ponta alta da igreja, abrindo o olho de quem dorme. É o canto do galo homem, COCORICO, ouvido mais forte que turbina do trem.
Argemiro parece que viu - ofereça umazinha que te conta. Sim, meu filho, tive com o animal, entre a sorte e a morte. Madrugada, água enevoada. Fui mijar na casinha, o sol laranjando a escuridão. Estava o bicho um pouco pra trás de onde está você. Indo embora, balangando o pescoço. Sabe galinha cocoricando? - multiplique por milhão. Galinha grande feito gente, galo Maria João. Virou pra mostrar o olhar. Amarelo, preto, farol do tormento. No bico a preá de Geralda, pobre da bichinha, virou coelho pra desossar. Ai do frango empanturrado - a voz daquele olho, o homem morre afogado, cebola e soberba, no molho pardo. Já vi neném que não vingou, já andei pelo cheiro do curtume, confusão estourando tiro. Horror da galinha, terror dessa categoria, não, que ninguém veja o que tive. Agora chega, meu filho, falei, lembrei, dê pra um pobre o trocado desgraçado.

Lembro que do caminhão me sobrou um, ali, ciscando esquecido, no pátio dos Frangos Rica. Franguinho branquinho, era um, tanto faz, podia ser do outro. Do peito sortudo, a asinha gorducha,  sobre coxa sobrevivente. Quis o destino presidente, algo deixou, uma mão que escorregou, que escapasse da execução. Ave ignorante, criada à ração, tão branca no chão da fábrica – Frangos Rica, confiança é nossa missão. E ela olhando, bicando, abriu as asas espreguiçando, sem conhecer a vida que tem, ou pensar na morte que foi.

Sandrim, Sandrim, sua vez de herói chegou. Vamos matar esse galo, esse galo morre hoje. Liberte a moça, prepare o coração pra cidade e seu abraço. Galinhosomem, este é o nome. Fale alto, sozinho, debaixo da coberta, sem medo, de frente ao espelho. Galinhosomem.
Sandrim deixou o quartinho das ferramentas. Da porta a escadinha que descia, da esquerda o caminho de trilha, rapaz, pra horta do milharal. Ele foi, espada e escudo, faca amolada e lata de querosene. Palito de fósforo, seu plano formado.
Entrou pelo milho. As plantas dos pés à cabeça, apertadas como multidão. Secas, duras, sem cor, sem vista. As espigas não prestam, uns caroços cabeludos. A noite clareando, não, o bicho não irá escapar. Circulando, Sandrim, andou às cegas, derramou seu querosene e fechou a armadilha. Riscou o palito, tocou o fogo. As labaredas correram, calor suando o corpo, fumaça ardendo o olho. Sandrim se viu cercado, maravilha, ilha em chamas por todos os lados. Galeto na brasa, frango assado da estrada, é domingo, frango de padaria - o monstrengo onde se queria.
Pinto saindo do ovo, o amaldiçoado surgiu aos poucos. Sandrim golfou, tossiu, melecou, os olhos marejados sem ar. Começava assim, suas pernas virando coxinha, os braços se transformando em asinha. A pele enrugou, pele de pássaro depenado, peito de pombo, pé de galinha. O nariz afinando, o bico surgindo, berra Sandrim, o monstro é Sandrim, a-há, sou galo de briga, quem vem me pegar?
O fogaréu, a arapuca, o bicho saltou e berrou querendo a fuga. Estava lascado, seu fim bem tramado, sente, é cheiro de frango queimado. Tinha ainda consciência do homem, lá dentro do Galinhosomem. Vanessinha enamorada, culpa minha, por você isso termina. No braço alado estava a faca. Sandrim pega o controle e a levanta pra garganta. O monstro tenta, esperneia, voa pena por todo o lado. A lâmina encontra a veia, o punho aperta, o punho segura, não tem juiz nesta rinha. Galinhosomem, volta pra tua granja, paga pelo que cometeu, nem cachorro quer tua carcaça. Sandrim, mané fracote, teu carijó é parte de mim, cortando essa faca, caímos juntos para o inferno. O fogo, o milho pipoca, o sol da manhã e o canto do galo. Sandrim espeta o próprio pescoço, o Galinhosomem afasta o próprio braço. Quem vence, quem triunfa, força, Sandrim, como acaba o monstro dentro de mim?


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