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sábado, 20 de março de 2010

A repulsa




Léo Borges


Ana, nas aulas de desenho, sofria com a humilhação dos coleguinhas. Diziam que a menina só sabia encher os papéis com contornos esquisitos, linhas perdidas que pareciam possuir significado apenas para ela. Naquele dia, entretanto, enxergaram algo em seus traços.


Só que o que viram não foi um jardim florido ou nuvens escondendo o sol, paisagens que, normalmente, habitam o imaginário infantil. E apesar de Ana garantir que seu desenho era um fofo bebê, ele foi entendido pelas outras crianças como o mais asqueroso dos insetos: “Ela desenhou uma barata!”, enojaram-se. Algumas chegaram mesmo a vomitar e a menina foi admoestada por um dos instrutores: “não desenhe mais esse tipo de coisa!”. A forma que o amontoado de riscos tomou teria sido apenas repulsiva se o transtorno que passou a causar não fosse tão perturbador. Mas, mesmo assim, Ana não se livrou de sua estranha arte, guardando-a como a mãe que protege o filho aleijado das injúrias e maldades.


De início, se entristeceu profundamente com a ojeriza criada. Percebeu, contudo, que se viram sentido no desenho, pelo menos foi compreendida. O importante para ela era conquistar a atenção através das linhas e, por isso, mesmo com um resultado tido como medonho, o inverso do que pretendia, ficou alegre.


Para melhor defender sua criação, refletiu sobre o medo que as pessoas tinham por baratas e não enxergou fundamento nesse temor. Se elas transmitiam doenças é porque andavam sobre o lixo e excrementos que os próprios humanos produziam. Não era incomum Ana se deparar com estes pequenos artrópodes nos armários da cozinha, pelos ralos, sob o fogão e até misturados ao enxoval do irmão que ainda não nascera. E a impressão que tinha, em qualquer dessas situações, era sempre a mesma: bichos inocentes, fugidios, companheiros do lar, criaturas divinas que, inadvertidamente, se expunham, prontas para serem esmagadas. O problema, como ficava claro para a garota, não eram os insetos, mas as pessoas, cujo pânico nada mais era que um sinal inequívoco de fraqueza.


Ana, naquela noite, resolveu escrever em seu diário o ocorrido na escola e mencionou que omitira o fato de sua mãe. Na rápida conversa que mantiveram no jantar, Fergônia estranhou o sorriso que não deixava a filha. Não a via assim desde que comprara as canetas para colorir. Na ocasião, pediu para que Ana desenhasse em seu próprio ventre, no sexto mês de gestação, um rosto sorridente em homenagem ao bebê – o varão que os familiares tanto queriam. “Desenhe direito, Ana, é um ser muito precioso o que está aí”. A menina, que passava a repudiar a ideia de ter um irmão tanto quanto o fato de não saber desenhar, tratou os rabiscos com uma raiva incontida, apertando a ponta da caneta na barriga da mãe numa ingênua tentativa de ferir o nascituro, em gestos que, se não fossem tão infantis, seriam realmente macabros.


O que alimentava seu ciúme era o amor desproporcional que todos tinham por aquele feto, um endeusamento desmedido que crescia dia a dia, transformando-se numa adoração tal que acabava por manter Ana num estado permanente de insignificância. “Está me machucando, Ana”. “Estou me esforçando, mãe! Quero que ele nasça parecido com meu desenho!”. O castigo de Ana por esse episódio não chegou a ser tão longo quanto o que recebera quando encharcou com inseticida o berço do bebê vindouro. E nem tão ruim, pois, trancada no quarto, ela teve tempo para treinar seus rabiscos nos papéis que encontrou pela frente.


Fergônia considerava a raiva de Ana uma coisa besta e torcia para que seu bom senso aflorasse e a filha pudesse, enfim, festejar também a chegada do menino. Ana pensava pouco nisso, queria apenas contar sobre sua conquista artística, mas este assunto não era importante; secundário, tornava-se proibido para que o apetite da mãe na mesa de jantar não fosse incomodado. Fergônia possuía pavor mortal de baratas, de modo que amores como o que por ora afloravam, certamente, teriam um impacto arrasador no convívio familiar.


“Desenhei um bebê, mas minhas amigas enxergaram uma barata. Fizeram cara de nojo, como minha mãe também já fez. Sentem repulsa de meus trabalhos. Eu detesto as pessoas, seres cruéis e nojentos. Seria bom se todos fossem como os insetos, que vivem sem arrogância. Se o que criei foi feio, que tenha sido apenas para os outros. O bebê de minha mãe, ao contrário, não é horrível para ninguém, só pra mim”.


Ana, enquanto escrevia, percebeu o pequeno vulto na sua casinha de bonecas. As compridas e finas antenas oscilantes não deixavam dúvidas: era uma barata! Sem ser apenas mais uma entre as inúmeras que existiam pelos cômodos, esta parecia mais íntima e provava isso, andando livre do comportamento arisco que caracteriza a espécie. O coraçãozinho da menina pulsou forte pela alegria do encontro. A barata, cuja sombra aumentava à medida que se contrapunha à luz do abajur, transitava com mansidão entre as canetas de colorir. Já a menina, que curtia o farfalhar típico, desejou que sua mãe também viesse apreciar a casinha de plástico servindo como palco para o desfile de tão rejeitado ser.


Estacionada perto de um dos brinquedos, a barata, de súbito, se espremeu e entrou pela roupinha de uma boneca sem braço, inchando-a e causando-lhe a impressão de estar gestante. Ana lembrou-se imediatamente da imensa barriga da mãe e do que o médico falara: “não se coloque em situações de grande impacto emocional”. Ver aquela cena foi uma coisa que lhe encheu de prazer, porém, chamar a mãe para compartilhar do seu deleite poderia ser de uma nefasta imprudência. Ou talvez não. Quem sabe não seria esta a grande oportunidade para Fergônia se reconciliar com a verdadeira humildade, aquela que só os bichos repulsivos possuem?


– Mãe!


O espetáculo fez a menina imaginar a mãe parindo uma barata gigantesca: primeiro as indefectíveis antenas aparecendo pela vagina, logo a robusta carcaça áspera e, por fim, as longas e inquietas patas emergindo com suas inúmeras microsserras afiadas. O obstetra, primeira testemunha do extraordinário acontecimento, usaria de ácida frieza para comunicar o nascimento da criatura: “é bastante saudável, dona Fergônia...”, diria, com o horror escapando-lhe sob a forma de suor, controlado apenas pelo interesse sombrio que certos eventos causam, “esta não veio pelo esgoto, veio mesmo por seu útero...”.


Ao se desgrudar do ventre sintético, a barata continuou com o passeio errante, monitorada pelo olhar maravilhado de Ana. Passou por cima do desenho que seria seu espelho, até encontrar restos de biscoitos. Feliz, Ana rastejou-se vagarosamente para perto. Espichou uma das mãos e, com singeleza, alcançou o inseto, que ficou estático. O carinho, embora socialmente grotesco, era sinceramente afetuoso. Mas, um súbito e aterrorizante grito pôs fim àquela aliança. Com violentas contrações, Fergônia – que surgira após ser chamada pela filha – caía tonta, entrando em trabalho de parto.


Os vizinhos, assustados com o que ouviram, arrombaram a porta e foram prestar auxílio. A indiferença de Ana diante da cena só foi menos perturbadora que a aparência inumana daquele bebê, cuja pele possuía uma repugnante textura.


– Nasceu prematuro – foi a explicação inventada por uma perplexa socorrista ao ter em mãos a massa amarronzada que emitia os primeiros grunhidos de choro.


Levaram mãe e filhos para o hospital. Com os olhos esbugalhados, uma das mulheres, acuada no canto da sala, não saiu do lugar – possivelmente paralisada pelo medo de acompanhar aquilo a que chamavam de criança. Para que sua presença ali fosse de alguma forma útil, limpou o quarto às pressas. Esqueceu-se apenas de certo papel largado no chão. Nele, listras malfeitas lembravam uma barata, mas as lágrimas e o sangue da placenta que o manchavam, destruíam a sua já pouca clareza.


Créditos da imagem: http://gametalkbr.files.wordpress.com/2009/10/medo.jpg

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