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sexta-feira, 12 de março de 2010

Simplício Aroeira descobre o que é a Morte

Urubus na árvore por Rafael Lavenère.
Foto: Rafael Lavenère


Cirilo S. Lemos
      O nó precisa ter sete voltas e correr sem impedimento quando eu me atirar ribanceira abaixo. A alvorada é boa hora para morrer. Quando a passarada começa a algazarra e as abelhas voam e os besouros zumbem e as flores se abrem. Alegria besta, essa do bosque, de esfregar na minha cara que tudo vai continuar igual quando eu me for.
          Escolho uma mangueira morta para pendurar o laço. Que nada vivo divida comigo o crédito pela minha morte.
O morro não é muito alto: arredondado, cortado por um barranco onde vagabundo despeja carcaça de carro, lixo e, desconfio, corpo de gente. Encostadinha na borda, a árvore morta, cuspindo raiz para além do barro seco. Atrás de nós, a estrada de terra de onde vim.  
A forca me espera, mas não posso deixar de espiar os urubus trocando olhares, sussurrando rapinagens de urubus. Estão falando de mim, aguardando ansiosos para saborear meu cadáver.
Isso vai ser um problema.  
Bebo um grande gole da garrafa de cachaça que carrego dentro do paletó. Meu cadáver é para apodrecer na terra, alimentar as ervas que crescem em tufos por entre os carros calcinados, adubar esse pedacinho da mãe terra. Não pra engordar urubu. Não pra virar bosta de urubu. Se eu quisesse ser bosta, bastaria continuar vivo.
            Mais um gole de cachaça, que é pra compensar o tempo perdido.
Esse sou eu: velho, pobre, bêbado, quase um mendigo. O que foi que construí nessa vida? De que me valeram todos aqueles livros lidos, todas aquelas besteiras escritas, toda aquela abstinência de álcool? O tesouro que acumulei é esta barba desgrenhada e cinza a se misturar com o cabelo, é essa bengala, é esse cachecol imenso pendurado no pescoço nem sei pra quê.
Dá trabalho subir nos galhos secos da mangueira, mas eu consigo. Passo o nó corrediço no pescoço e o ajusto com cuidado. Não há para que ter pressa: suicídio é arte, um teatro cujos atos devem ser executados bem devagar. Há que se degustar cada sensação, o toque do vento e do sol e da corda na pele, saborear a textura de cada uma, o doce e o amargo na saliva, o medo de viver e a angústia de morrer. Morrer é, sim, uma experiência da vida. Pois vamos lá.
Equilibro-me no galho, a corda no pescoço. Daqui posso ver a serra azulada contornando o horizonte, ondulando feito o álcool no meu sangue. Estufo o peito, recito versos de um poeta morto e pulo.
A traquéia quebra, mas o que me impressiona mais é o estalo do galho se partindo logo acima de mim. Rolo pela ribanceira como um pneu velho, um turbilhão de trapos e cabelos quicando nas pedras e raízes. A poeira me entra nos olhos, boca, ouvidos, nariz, em cada poro e cada orifício, enquanto eu penso: isso não acaba nunca?
Mas acaba. Deitado em meio ao lixo, aos cacos de vidro, aos dejetos e toda sorte de sujeira, eu vejo que acaba. Ossos quebrados, cortes profundos e sangue vazando pela boca, um gosto enjoativo de ferrugem e cachaça. O pescoço parece não existir mais. Só resta a sensação nem boa nem ruim de um completo vazio onde deveria estar o corpo.
A visão agora é um quadro desfocado e imutável: uma parede de lixo ao lado esquerdo, uma árvore ressequida coalhada de urubus assustados e um céu de chumbo brotando do chão e preenchendo todo o fundo. Alguma coisa está muito errada. O céu não deveria sair do chão nem o lixo formar uma parede vertical. Isso só se explicaria se eu estivesse deitado com o lado esquerdo no solo. Acho que é isso, então. Não dá para saber ao certo, a visão vai e volta e eu não consigo perceber nenhum outro sentido funcionando. Olfato, paladar, audição, nada disso é acessível agora.

 Quanto tempo se passou desde que saltei do barranco?
 Agora que não passo de uma cabeça confusa presa a um corpo evanescente, o tempo se desfez num único e interminável agora. No final das contas, morrer não é exatamente como eu imaginei. A mesma monotonia de estar vivo, mas não se pode chatear ninguém com reclamações.
Sonho: uma ruiva gritando comigo na porta de um bar, nós dois bêbados o suficiente para discutir nossa vida sexual em público. Ela não é minha mulher, não tenho idéia de quem possa ter sido.
Um avião passa fazendo sombra no meu rosto.
Não posso ouvi-lo, apenas preencher com a imaginação seus movimentos mudos.
É outro devaneio, penso.
Mas vejo que não: é um lagarto gigantesco acima de minha cabeça.
Não, nem lagarto, nem avião. Consigo distinguir o bico nojento, a pele sarnenta debaixo das penas escuras e fedorentas. Seu olho a me observar tal qual um planeta imenso pairando nas alturas. Em algum lugar abaixo do pescoço, meu corpo deve estar tendo calafrios de pavor.
A primeira bicada arranca-me o lábio superior. Posso senti-lo descarnado, deixando à mostra parte das gengivas roxas e dos dentes. O urubu ergue a cabeça para engolir a carne. O movimento de sua garganta empurrando meu lábio para seu estômago é engraçado. Dou-me conta de que nunca vi um bicho desses tão de perto. Ele abre suas asas e arranca mais um naco da minha boca, esculpindo-me um sorriso perpétuo. Mais urubus se aproximam, os bicos escancarados. Quando um deles estoura meu olho, é como uma explosão de luz e fogos vermelhos por todo o universo. Então só resta escuridão e um banquete.

Três sonhos a me ocupar nessa letargia monótona.
Uma moça da minha juventude, que se abaixa graciosa para apreciar um desenho feito a giz na calçada, os cabelos de um castanho escuro que refulge um brilho prateado. Ela sorri para mim depois de falar de alguém querido que sofrera morte fortuita. Um sorriso de pura tristeza, e ainda assim o mais belo que eu já vi.
Um livro de Nietzsche me cuspindo na cara que Cristo era um idiota, assombrando-me com palavras hereges e sujas, até ser usado por minha tia para alimentar uma pequena fogueira nos fundos do quintal.
A visita a uma casa de repouso próxima à Central do Brasil. Por fora a beleza da arquitetura, por dentro os corredores de cerâmica ensebada, abarrotado de espectros humanos revolvendo-se na própria sujeira. Uma celebração ao que somos lá no fundo.
Imagino, abrigado dentro da treva profunda, que não tenho mais rosto, só uma massa pútrida de restos de carne e ossos escurecidos. Nesta eternidade que estou aqui – um dia ou mil anos – muito refleti sobre o que é a morte. E cheguei à conclusão de que é como uma fila de banco, só que bichos carniceiros fazem coisas com seu cadáver. Isso é a morte. Nada de harpa, nada de tridente. Apenas um longo e tedioso aguardar.
Algo mordisca a borda da minha consciência.
Um intruso em meu vazio?
 “Quem está aí?”
A resposta vem na forma de um serpentar na base do pensamento. Assusto-me: algo se alimenta da única coisa que ainda ficou de mim.
Um novo serpentear me agita a mente. Seja o que for, parece procurar por algo. Reconheço a sensação de mordida. Pela primeira vez desde que me matei, sinto algo semelhante a dor. Vem em ondas, irradiadas a partir do ponto onde o invasor se conecta comigo através do abocanhar agudo.
Posso ouvir sua voz, tocar seus sentimentos doentes e a partir disso delinear sua forma: um verme. Formado por centenas de outros vermes.
“Podemos nos alimentar de você, querido?”, ele sibila, uma forma de cobra horrenda, translúcida, leitosa.
Minha mente estremece e se encolhe. O verme avança e devora outro pedaço dela. De mim. Ele ri do meu desespero, saboreando lembranças minhas da infância, sonhos, emoções. Outra mordida e lá se vai a imagem da moça graciosa de cabelos castanhos, o sorriso inesquecível transformando-se num suco adocicado a escorrer pela boca arreganhada do verme.
Bocado por bocado, ele vai comendo tudo o que fui. Contorce o corpo de prazer a cada mordida. Eu me torno cada vez menor, até que tudo o que resta de mim, de todas as coisas que fui e de cada aspecto que assumi, é o medo da última mordida.
E quando ela vem, até mesmo o medo se dissipa. Nem o verme me assusta mais. Agora eu e ele somos um, e juntos rastejamos de volta para as profundezas do nada.




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5 comentários:

Alguns pedaços muito interessantes na formação de imagens, «os urubus trocando olhares, sussurrando rapinagens de urubus», por exemplo, chamam-me a atenção. O texto progride e o insólito do conteúdo forma uma papa com o horror. Acaba-se o texto com relutância.
Muito forte. Impressivo. Não sei se gostei, mas o texto é admirável.

Agradeço e aprecio profundamente seu comentário, Joaquim.

Genial.
Esse é daqueles textos que devem ser lidos e imaginados como se fôssemos nós próprios o protagonista, para poder sentir o que o personagem está sentindo de verdade.
Sem defeitos, mesmo.
Abraço!

Muito bom o conto, a fotografia dos urubús na árvore também. Só não tem o crédito do fotógrafo.

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