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terça-feira, 9 de março de 2010

As canções de papel machê

Eu consegui minha primeira guitarra no verão de 1969. Para isso passei um ano inteiro guardando o dinheiro ganho ajudando meu pai na mercearia. Empacotei milhares de dúzias de ovos, ensaquei compras para todas as senhoras de perfume enjoativo da vizinhança, esfreguei o chão até ele ficar brilhando. E valeu a pena.


A primeira semana de férias, passei trancado no meu quarto. Eu e a guitarra. Toquei até meus dedos sangrarem e criarem calos. Quando achei que dava para enganar, dei o passo seguinte: criar uma banda. Eu na guitarra, João, meu melhor amigo, no baixo e a irmã dele na bateria. Judite era mais velha, mas apoiou o projeto desde o início.


Só faltava uma voz. Precisávamos de alguém para cantar, e Dite trouxe Clarice para minha vida. Desde a primeira vez que a vi, no primeiro ensaio sério de nossa banda, seu olhos doces no rosto calmo e o sorriso sereno ficaram marcados na minha memória.


Ali começara a carreira efêmera do “Papel Machê”, nome sugerido pela própria Clarice. Sabia que não duraríamos muito, mesmo assim foram os melhores dias de minha vida. Os bailinhos de sábado do quarteirão eram animados por nós com versões dos grandes sucessos da época. A voz de Clarice adoçava tudo, e viver valia a pena. Toda a tarde, tocávamos na sorveteria do bairro. Nosso pagamento era a banana split especial, que podia ser dividida com folga pelos quatro. E vez por outra, uma festa não renumerada de algum amigo.


Claro, algumas confusões aconteceram. Na festa de aniversário da minha prima, um amigo dela fez um convite para a nossa baterista. Ele não sabia que Mario, o namorado gigantesco da Dite, também estava presente. A briga generalizou-se, João quebrou o nariz e Judite três unhas, mas os instrumentos não sofreram nada.


No fim do verão, demos nosso último show. Dite iria casar-se e depois da confusão, Mario havia se tornado contrário à participação dela na banda. João e eu, ambos fazendo dezoito anos, iamos prestar serviço militar. Depois do final do baile, nos despedimos, prometendo uma reunião da banda em breve. Os dois irmãos foram para casa, enquanto eu acompanhei Clarice, que morava mais perto de mim. Os sentimentos entalados na garganta, por meses a fio, pareciam sentir o fim da estação. Queriam irromper, aproveitar os últimos dias de calor, antes que tudo terminasse.


Não consegui. Andávamos lado a lado, como fizéramos tantas vezes naquele verão. Discutimos sobre tudo o que não era importante. Lembramos os shows, as confusões, as brigas de João e Dite por qualquer bobagem...

Paramos em frente à casa dela e continuamos a conversa, encostados no Porshe da mãe de Clarice.


Ela fitava as estrelas, que pareciam reluzir no seu olhar Evitava virar o rosto para mim enquanto falava. De repente, após um súbito silêncio, ela suspirou e olhou para mim.


- Sabe porque eu sugeri o nome “Papel Maché”?


- Eu nem sei o que é...


- É uma forma de artesanato. Pedacinhos de papel amassados e colados... Sozinha, cada parte é lixo, mas juntas fazem lindos objetos. Como nós...


- A banda?


- Sim, eu queria que esse verão não acabasse nunca... A banda, cantar... A companhia de vocês. Principalmente a sua, Paulo. Você foi importante demais para mim.


O coração bateu, descompassado. Era agora.


- Clarice, eu...


- Meu pai foi transferido para outro estado. Mudamos-nos em uma semana. Passei o verão inteiro querendo não pensar nisso, em tudo o que vou perder. E vocês conseguiram, mesmo que agora eu vá perder ainda mais coisas do que antes...


Beijou-me de leve na boca e foi em direção à casa. Eu fiquei ali, parado, olhando ela se afastar, o coração apertado com tudo o que eu não disse e nunca ia dizer.


Assim terminou o verão de 1969. Cresci, casei, tive filhos e enviuvei. Em cima da mesa do meu escritório, as fotos da minha família. Em um canto especial, um porta-retrato de papel maché, com uma foto dos quatro integrantes do conjunto, tirada antes da última reunião pelo pai dos dois irmãos... Judite me enviara alguns anos depois. Ela atrás, abraçada com João, os dois fazendo careta. No primeiro plano, Clarice e eu, rindo. Nunca mais vi nenhum deles.


Penso que aquele verão poderia ter durado para sempre. Foram os melhores dias da minha vida, os do verão de 1969.

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4 comentários:

Perdoe-me a palavra rude para classificar algo tão singelo: foda. Nostálgico e sentimental sem ser piegas. Meu verão especial, com direito a banda e tudo, já vai embora também na esquina do tempo.

Não levei nem 5 minutos pra fazer a pesquisa e apenas um segundo pra notar o erro.
Tempo livre demais?
Acho que é você que não quis se dar ao trabalho de saber o que era papel maché

Essa banda tocou apenas uma tarde? Que tarde foi essa?
Pelo resto do texto pensei que eles tocassem "todas as tardes"...

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