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sábado, 9 de janeiro de 2010

O último soneto

(Publicado na coletânea AnaCrônicas)

Escreveria um soneto. Não apenas mais um dos muitos, mas "o" soneto. Então ela entenderia. Sim, naquela derradeira demonstração de sua arte finalmente revelaria seu coração. Olhou a garrafa de vinho, largada pela metade em cima da mesa. Depois de terminar o soneto, usaria aquele mesmo líquido, escuro e cor de sangue, e acabaria com tudo. Era só misturar algumas gotas de um veneno, de preferência o mais raro e exótico possível para ter um fim digno do seu último soneto.

Porque este seria magistral. Sua obra-prima, que o tornaria finalmente reconhecido. E que faria com que ela o amasse. Há quanto tempo a observava em silêncio, enquanto passava pela rua, sempre acompanhada por sua dama de companhia. Tinha cabelos de ébano e pele de alabastro. Jamais conseguira ver o rosto, porém imaginava feições delicadas, olhos como o mar velados pelas cortinas de veludo que eram seus longos cílios.

Talvez pudesse começar o soneto assim.

Pensou um pouco. Decidiu que seria melhor não fazer assim, de forma tão óbvia.

Sequer sabia seu nome. Não tinha idéia de onde morava, ou o que fazia. Ela não sonhava que ele, pobre infeliz, existisse. Mas não precisava saber. Era a sua musa, o seu amor. Da imagem, perfeita, limpa, pura, sem sequer a mácula do conhecimento invasivo, ele tiraria a inspiração para o soneto perfeito. Infinitamente superior àqueles versinhos medíocres que publicava em revistas literárias, e que lhe davam o dinheiro, aquele sujo capital necessário para viver.

Levantou-se e percorreu o quarto imundo até a janela. Na noite fria, o luar transparecia sereno, lembrando a brancura da pele dela. Sim, escreveria um soneto, o mais belo de todos. Morreria, por suas próprias mãos. Assim se vingaria de todos os que o humilharam e também dela, que passava por sua vida como se tivesse esse direito.

Entrou em um delírio febril. Imaginou-a de luto, chorando desconsolada sobre seu túmulo. Em suas mãos, uma cópia do soneto, suja e amassada, manchada de lágrimas. Viu-a definhando de tristeza pelo amor que tivera sem saber. E no auge da alucinação, estava lá quando ela, em um suspiro sentido, entregou a alma, para finalmente se entregar ao seu amor.

Riu, até perder o fôlego. Começou a tossir, aquela tosse doentia que o perseguia há anos. Sentou-se na cadeira e entregou-se aos espasmos dos pulmões doentes. O velho gosto de ferro subiu a sua boca, deixando um travo amargo. Com dificuldade, levantou e buscou um lenço para limpar os lábios. Quando o tirou da boca, estava manchado de sangue. Outro acesso de tosse o deixou ofegante. A dor tomou seu corpo.

Abriu a pequena caixa de remédios. Pegou a dose de láudano que tiraria a dor. Mas um terceiro e mais brutal acesso de tosse fez o medicamento cair no chão. Ajoelhou-se, ainda tossindo. A vista ficou turva, sentia frio. O desespero tomou conta de si.

Não podia morrer agora, sem escrever seu último soneto.

Enquanto visualizava a sua musa, ele veio à sua mente. Completo. E ele viu que era realmente genial. Mas já era tarde para o derradeiro soneto.

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