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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sobre escritores e suas drogas

Caio Rudá de Oliveira

As drogas desde há quase um século, pelo menos, tem sido um assunto de total rejeição social. Nem sempre foi assim, no entanto. Desde os primórdios, a humanidade faz uso dessas substâncias, e somente no último século devido a aspectos legais o proibicionismo veio a ser a tônica do discurso popular e científico.

Esse artigo tenta fazer um pequeno estudo acerca da literatura da droga, isto é, acerca da relação entre drogas, escritores e Literatura. Como aponta Marcus Boon em sua obra The Road of Excess, “literatura e drogas são dois domínios dinâmicos da atividade humana que evoluíram em paralelo e estão ligados com muitos outros campos, sejam eles humanos ou não”.


Realidade social da droga
O universo científico ainda é relutante em deixar de lado o determinismo farmacológico das substâncias psicoativas, mas tem havido sérias mudanças no direcionamento dos estudos, muitos dos quais têm formado um novo paradigma para o entendimento do consumo de tais substâncias. Significa dizer que não mais se acredita que todas as pessoas estejam condicionadas aos mesmos efeitos, e que esses resultam de uma combinação da substância, expectativas do usuário e meio sócio-cultural¹.

Esse modelo tripartido do uso de psicoativos foi e é sustentado por várias autoridades, médicos, antropólogos e psicólogos, a citar o psiquiatra estadunidense Norman Zinberg, que ao desenvolver o trinômio ¹drug-set-setting, provou que não há protótipos de usuários, contribuindo assim para a diminuição do preconceito diante deles.

Com efeito, a tendência da ciência é cada vez mais fazer ir por terra a informação aterrorizante, unilateral e preconceituosa do antigo discurso médico. Em outras palavras, busca-se atualmente substituir a visão das drogas enquanto causa dos problemas sociais. Alguns teóricos do assunto, inclusive, escrevem que os psicoativos em si não são bons nem ruins. Mais uma vez cita-se Boon, quando ele diz que “as drogas não tem sentido fora do contexto nas quais são usadas”.


Drug literature
O fato é que se não se aceita a interpretação científica atual para o fenômeno das drogas, condena-se figuras ilustres da História. Imperadores, intelectuais e escritores, todos eles se revelam, em alguma medida, consumidores de psicoativos. Mas o que vem a ser a literatura da droga, ou drug literature? Essa é uma pergunta que Boon traz, com a reserva de considerar esse conceito amorfo, dado que, ainda que seja excluída a literatura científica da catalogação, não se chega à sua definição exata. Para o presente artigo, a literatura da droga consolida-se como o conjunto de textos artísticos ou não que mantêm alguma relação com o uso de substâncias psicotrópicas, seja como matéria de escrita ou artifício do modus operandi do autor.

Encontrar um ponto de partida para o estudo da drug literature não é tarefa em que todos costumam ser unânimes, mesmo porque essa seria uma ocupação arbitrária. Alguns vêem no poeta inglês Coleridge um divisor de águas nesse sentido, um introdutor da noção de exploração do mundo interior através do uso de psicoativos. Porém, Boon credita ao também inglês Thomas de Quincey e sua obra Confessions of an English Opium Eater o pioneirismo nessa relação simbiótica entre drogas e literatura.

A partir dessas considerações, surge outra questão. Sendo Coleridge e De Quincey contemporâneos e precursores, seria a literatura um campo livre das drogas antes deles? Absolutamente não. Estudiosos apontam que as drogas sempre tiveram e ainda possuem uma função na sociedade que, provavelmente, permanecerá ao longo de toda a existência humana.
Homero, na Odisséia, faz menção a um analgésico provavelmente derivado do ópio. Também Marco Aurélio, imperador romano e filósofo nas horas vagas, supostamente está entre um dos antigos consumidores de ópio. E esses são apenas dois exemplos do comuníssimo hábito do ópio, na Antiguidade.

Durante a Idade Média, devido às circunstâncias da época, não é de se admirar que se encontre pouca ou nenhuma referência às drogas. Sequer falar nelas era risco de ser ligado a rituais de magia e ir parar na fogueira, conseqüentemente.

Na época seguinte, no entanto, com o Renascimento, já não se fala no binômio drogas-concupiscência, associação perigosíssima séculos antes, e vestígios de liberdade passam a ser esboçados. A partir desse tempo o ópio ressurge com força total: Goethe, Novalis, Coleridge, Shelley, Byron, Wordsworth e Keats, mostram consumo regular de ópio. Por sua vez, Baudelaire, Rimbaud, William James e Nietzsche interessam-se ou escrevem sobre a ebriedade.

Avançando a linha do tempo, Sir Arthur Conan Doyle foi um famoso consumidor de cocaína, cujas condições de usuário ele transfere para seu personagem mais ilustre, o detetive Sherlock Holmes. Ainda sobre a cocaína, cita-se Freud e seu entusiasmo com a substância, da qual foi um defensor em parte de sua vida, e provavelmente um usuário durante toda ela; ainda assim, um dos mais brilhantes sujeitos de todos os tempos.

Tem-se, então, os clássicos casos de Balzac e Jean-Paul Sartre: em comum, o abuso de substâncias estimulantes, hábitos de vida pouco saudáveis e excesso de trabalho num ritmo alucinante. Acredita-se que Balzac tenha consumido em torno de 50.000 xícaras de café em seus 51 anos de vida. Também Marcel Proust e Francis Fitzgerald, George Buffon, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau eram grandes bebedores de café. Vários fatores parecem explicar esse fato, como a legalidade do produto e a facilidade de preparo, além de ser uma bebida aprazível ao paladar.

Kerouac aparece como um nome forte, quando o assunto é uso de anfetaminas. Diz a lenda que ele escreveu sua obra principal, On The Road, em apenas duas ou três semanas.

O filósofo Jean-Paul Sartre é frequentemente lembrado pelo seu uso constante de drogas, entre as quais corydrane, composto de anfetamina e aspirina. Segundo a biógrafa Annie Cohen-Solal, ele acordava com uma xícara de café e um tablete de corydrane, depois dois, três – quantos fossem enquanto durasse a escrita. Dessa maneira foi escrito toda A Crítica da Razão Dialética.
No outro lado da rua, em contrapartida ao speed das anfetaminas, tem-se a maconha e o haxixe e sua “serenidade” induzida. Na coleção As Mil e Uma Noites, clássico da literatura persa, há pelo menos duas histórias envolvendo o haxixe. Porém, é na França do século XIX que o consumo essa droga parece ter sido comum entre alguns grupos.

Moreau de Tours é acreditado ter introduzido o haxixe na cena artística parisiense, através do Club des Hashishins – entre os artistas que freqüentavam estavam Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix, Honoré Daumier, Alphonse Karr, Gautier, e Baudelaire.

Há também um manuscrito publicado por um jornal austríaco, supostamente escrito por Goethe, em que ele narra uma experiência com o haxixe. O texto seria, inclusive, a primeira menção à fome aguda provocada pelo consumo de tal substância, conhecida como “larica”. De acordo com Boon, Coleridge e De Quincey não tem seus nomes associados apenas ao consumo do ópio, mas também teriam experimentado haxixe em alguma oportunidade.

O artigo não poderia estar completo sem tocar nos psicodélicos. Visto que esse seria um campo muito fértil, estão relatados aqui apenas alguns casos de autores e suas “viagens”. Nesse sentido, encontram-se nessa galeria a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e sua evidente referência ao cogumelo alucinógenos amanita muscaria, a aletheia de Heidegger, Jünger – utilizavam LSD –, Foucault e Deleuze, o escritor Witkacy, o surrealista Artaurd, o belga Henri Michaux, e, óbvio, Aldous Huxley e seu grande interesse sobre a percepção humana. Muitos outros artistas, músicos e escritores, de alguma maneira ou de outra, estiveram ligados com os psicodélicos, especialmente no século passado, mas a lista é tão grande e tão diversa que seria insuficiente enumerá-la aqui, merecendo maior e destacada atenção numa outra oportunidade.

Considerações finais
Conforme foi visto, ao longo da história da humanidade, drogas e literatura estiveram de algum modo conectadas, embora seja comum entender a arte literária como uma zona pura, etérea, em cujos domínios nada parecesse imperar senão a criatividade e o esforço da técnica. No entanto, a droga aparece na história da literatura como uma ferramenta para expandir a percepção e conceber histórias fascinantes ou pontos de vista aguçados, ou para intensificar o ritmo de escrita. De todo modo, as drogas em suas mais diversas representações estiverem e provavelmente estarão presentes no fazer literário, simplesmente porque sendo essa uma atividade humana torna-se impossível ver o autor como uma entidade sobrehumana.

Foi possível identificar determinados padrões de uso de certas substâncias, o que confirma a idéia da droga enquanto elemento social, e como tal sujeito às transformações que as sociedades passam. Os escritores opiômanos refletiam uma crise da subjetividade, os célebres usuários de cocaína, como Freud, desafiaram paradigmas, as anfetaminas foram coadjuvantes em várias obras em um século XX marcado pela rapidez. Enfim, escritores e suas obras são resultado do seu contexto sócio-cultural, ao mesmo tempo em que o transformam. Em última análise, a escrita, ato tão individual, é sempre moldada pelo social.


* Esse artigo foi adaptado de um pequeno ensaio acadêmico para a disciplina Sócio-antropologia das Drogas, ministrada pelo professor Edward McRae, do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Para consultar as referências, clique aqui.

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5 comentários:

Muito interessante o artigo, Caio.

E eu também faço parte deste grupo, sou adepto de uma substância altamente estimulante das papilas gustativas: a batata-frita.

Sou um batatafritômano. :D

sahuahsusahasuashasuhasu
Bom, tb achei realmente mto interessante, não é um assunto tão abordado...(claro, tirando o fato de dizerem que ingerimos drogas pelas nossas costas, sem cometários...)
Mas acho que a minha substância é mais chá e alface, hehe(tinha que ser mulher, né?)
Estarei de vez em quando passando por aqui=D
bjkz

Quem diria que no século XXI os escritores seriam muito mais caretas? Batata-frita, alface... eu mesmo sou partidário dos doces. Tem coisa mais infantil? hehe

Imagino que tudo tem muito a ver com a repressão, Caio.

Existe era mais repressiva do que a vitoriana, por exemplo?

Ou do que a década de 50, contra a qual os filhos se rebelariam através do rock'n'roll e das drogas?

Ou dos anos de ditadura no Brasil?

A nossa geração nunca conheceu repressão de fato, tudo é permitido, toda punição é proibida porque "traumatiza" os filhos, não há limites.

Minha mãe era bastante liberal, mas, nem por isto (ou talvez por isto), eu nunca fui de sair à noite, nunca bebi, nem usei drogas, nem fui um porra-louca.
Talvez, se ela houvesse sido uma mãe autoritária, tivesse mais graça ser rebelde...

Hoje, a droga está bem menos associada à liberdade, à expansão do pensamento, e muito mais associada à marginalidade, às Cracolândias, ao submundo.
Ninguém mais se orgulha de ser usuário de drogas, como já ocorreu com o LSD e a maconha.
Atualmente, até drogas lícitas tem se tornado tabu, tem se tornado um estigma social.

O estimulante de que sou partidário é público e notório: o café. E posso afirmar que Balzac tem uma grande influência, já que o que mais recordo de "A Comédia Humana" foram as páginas e páginas introdutórias, falando da vida devotada do escritor à produção literária.

E meu vício ficou registrado na minha obra - o blog Um resto de café frio. Explica-se: eu só me distraio e esqueço do café que estava tomando - que, de modo geral, só é lembrado quando já está frio... - nas horas em que "engreno" em uma idéia, numa cena, num diálogo ou, é claro, num poema.

Minha vida é deliciosamente insalubre por causa dele. E minha produção agradece: dos meus poemas, os que mais gosto foram escritos quando já estava "chapado" de café.

Outras coisas, gosto, mas não me ajudam necessariamente a escrever (ou, não estão diretamente ligadas ao processo...) são as drogas mais achincalhadas pela mídia e a opinião pública atualmente: os alimentos ricos em carboidratos, açúcares e gorduras. Confesso que aprecio, sem muita moderação.

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