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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Saramago em Concerto

Joaquim Bispo

Na última passagem de ano, desloquei-me com o grupo familiar habitual ao espaço fronteiro à Torre de Belém, onde a autarquia prometia música e fogo de artifício. A surpresa foi muito agradável. Até à meia-noite, actuou um conjunto muito curioso: é formado por três violas, bateria, piano e três metais, só tocam músicas dos Beatles, copiam-nos em tudo, até nas roupas. Dão pelo nome de «Get Back Beatles» e são brasileiros. O esforço rende resultados: abstraindo-nos um pouco, quase acreditamos que estamos a ver e a ouvir os autênticos, quarenta anos depois, em Lisboa, todos vivos e jovens.

Admirei estes fulanos por terem conseguido arranjar um nicho de mercado original e rendoso.

Este revivalismo vem acontecendo com outras formulações. Tomei conhecimento que, num clube privado, um grupo fazia a passagem de ano só com a banda sonora de uma novela brasileira. Uma passagem de ano temática.

Sempre atento às oportunidades de ganhar dinheiro com a literatura, dei por mim a pensar como se aplicaria o conceito ao ramo literário:

Seria possível encher um pavilhão, a pagar, para ver um autor a criar um conto? Várias câmaras captariam a folha onde o escritor alinharia as palavras, apresentando em grandes ecrãs panorâmicos, com que palavras começava, quais cortava, mostrando o conto a nascer e a crescer paulatina, mas inexoravelmente. Outras câmaras mostravam que apoios consultava, que palavras procurava nos dicionários, que partes ia aproveitando. Seria de evitar que o escritor usasse computadores, que embora tornassem a história visualmente mais limpa, fariam desaparecer as partes rejeitadas, que no papel se conservam riscadas como cicatrizes do lutar literário. Quando muito, uma secretária, bonita e eficaz, iria passando a computador e mostrando em ecrã próprio a história num evoluir limpo. O frenesi no público aumentaria, à medida que algumas variantes da história eram abandonadas, nem sempre recompensado com uma variante mais interessante. Por fim, a história atingia o seu fim e o público rebentava em aplausos, a cujos “bis” o autor se mostrava surdo.

Numa fase de esgotamento da receita, o espectáculo podia incluir, como novidade, a apresentação em ecrãs próprios, como complemento, do desenrolar da tempestade cerebral do autor, através de sensores encefalográficos, podendo o público assistir ao saltitar constante da actividade cerebral, acendendo uma ou outra área, convenientemente identificadas pelo nome e pela actividade que desenvolvem.

Daria para encher um pavilhão com dez mil pessoas?

Para um público mais restrito e conhecedor – em sala-estúdio –, o escritor podia produzir uma história “à maneira de” um autor conhecido. A história seria totalmente nova, mas faria lembrar, irresistivelmente, o autor de referência. Para os melhores resultados, não faltaria quem levantasse a suspeita que o escritor se limitara a transcrever um inédito desconhecido do autor emulado, conseguido sabe-se lá por que ínvios meios.

De qualquer modo, não se trataria de um paralelo perfeito com estes “Beatles”. O que eles fazem não é criar música com o estilo “Beatles”, nem recriar, com estilo próprio, as músicas originais. Isto seria escrever uma história conhecida com palavras próprias. Eventualmente, introduzindo uma peripécia, ou alterando outra, de maneira a potenciar a emoção que a história já transmite. O público que conhecesse a história iria achar que esta versão era mais neo-realista que o original, por exemplo, ou que não respeitava a intensidade da relação entre os protagonistas. Uma opção a considerar.

O que eles fazem é imitar os Beatles e as suas músicas ao mais pequeno pormenor. O equivalente literário seria um escritor transcrever, palavra por palavra, uma obra literária de um monstro das letras. Onde residiria o interesse do público? Talvez a confirmar a sobreposição perfeita da história. Os mais puristas trariam exemplares da obra em execução e comparariam, ponto a ponto, o virtuosismo do escritor-reprodutor. Não se lhe exigiria, claro, que nunca tivesse lido a obra – como Borges fez com Pierre Menard – mas que não lhe escapassem as reticências cheias de segundos sentidos, nem o rigor dos itálicos. Depois dos aplausos, haveria sempre alguém que comentaria: ”Viram onde ele pôs o travessão, quando Gregor Samsa percebe que é um insecto? Já vi o Fritzl executar este conto com muito mais virtuosismo, sem falhar uma vírgula. Não há executante de Kafka como ele!”

Pensando bem, a reprodução em literatura tem o seu maior público na leitura. Podemos comprar o livro, mas por que não ir ao concerto? Já imaginaram um concerto de Fernando Pessoa, ou uma audição de Woody Allen? Aí, um “diseur” pode obter algum efeito de arrebatamento no ouvinte: a clareza cristalina da voz, as entoações, insinuando significados, as pausas, dramatizando silêncios – alguém que transmita toda a potência dos diálogos, como quando o cantor arranca emoções da audiência, que faça o pensamento do público vogar por regiões etéreas, quando percorra os bons nacos de prosa narrativa, qual solista a desenvolver a parte instrumental.

Com o fenómeno da pirataria a fazer perigar o retorno económico das edições, a solução pode passar pelos concertos. Quem sabe se alguns de nós, escritores iniciantes, mas muito promissores, não viremos a obter divulgação e início de reconhecimento público, fazendo a primeira parte de grandes concertos de escritores famosos!
Alguém sabe quando é o concerto do Saramago?

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3 comentários:

Muito bom, Joaquim.

No entanto, serei obrigado a frustrá-lo um pouco...

Uns quatro anos atrás, um cronista brasileiro chamado Mario Prata fez um experimento semelhante. Colocaram uma câmera na casa dele e o site acompanhava, em tempo real, tudo o que ele escrevia no computador. Assim, os leitores não só podiam ver a vida cotidiana do autor como também o resultado, segundo a segundo, do trabalho dele, os trechos que apagava ou mantinha.

Já o "concerto literário", imagino que as leituras de contos e trechos de romances fiquem mais ou menos perto disto.
Dickens era famoso em Londres por suas leituras literárias, milhares se reuniam para ouvi-lo recitando "Oliver Twist", ou "Um Conto de Natal".
Os americanos ainda mantém esta tradição e contam que Truman Capote também conseguia dominar a audiência.

Mais recentemente, Chuck Palahniuk causou comoção durante as leituras de "Guts", um de seus contos, e foi um fenômeno de histeria coletiva, pessoas desmaiavam, choravam, tinham crises nervosas. Dado o sucesso, contrataram um ator para ler, com ainda mais impacto, tal conto.

Mas acho que o público ainda prefere The Beatles cover, do que Saramago cover, do mesmo modo que preferem um joquinho de futebol do que assistir a uma partida de xadrez.

Dum modo ou de outro, estamos num mato sem cachorro.

Ay, caramba! E eu que pensava estar a inventar uma hipótese completamente surrealista...

Posso sugerir que na Sam pdf este seu comentário seja incluído numa caixa (cacha?) no final da minha crónica? Talvez entre «Uns quatro anos atrás» e «mais impacto, tal conto».

Farei isto, Joaquim...

Para você ver, a realidade consegue ser mais bizarra do que a ficção, na maior parte do tempo.

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