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quarta-feira, 11 de junho de 2008

A única Paz possível é a Jacimeire

Leo Borges

O que eu mais gosto no Bar do Setembrino são os axiomas do Rildo. Normalmente vêm acompanhados de bolinhos de carne – especialidade da casa – e cerveja barata, muito comum nos subúrbios. Se não vejo o Rildo em uma das mesas na calçada, cumprimento o Setembrino, jogo uma sinuca, falo um pouco sobre futebol, mando um beijo pra Jacimeire e sigo meu caminho. Mas com ele por ali, fato relativamente raro, fico para um papo mais cáustico, onde suas verdades empíricas vão sendo derramadas sem filtros para quem quiser ouvir.

Hoje ele estava por lá, como sempre na mesa exposta ao ar livre, se misturando entre os transeuntes apressados. Rildo dizia que o melhor de um bar não é a comida e nem a bebida, mas a possibilidade de ver as pessoas, nervosas, correndo de um lado para o outro numa sessão pavorosa de corpos em movimento. Não me furtei em puxar uma cadeira para acompanhá-lo com uma gelada. Comentei sobre um fato triste que havia presenciado momentos antes, quando um pivete roubara a bolsa da dona Lourdes. Ele decretou que a paz que o mundo busca é impossível porque entra em conflito com a própria essência beligerante do ser humano.

Qualquer conduta reativa é, antes de mais nada, uma violação ao que foi explanado anteriormente. Na visão macro de Rildo essa premissa é não apenas primordial como muito pitoresca.

– Quando rompemos o padrão, a vida se movimenta e as pessoas se desacomodam e com isso, evoluem. Sem a bolsa roubada, Lourdes iria pra casa assar sua carne, fazer seu arroz. Mas aconteceu um fato novo em sua vida e isso a vai fazer pensar em outras coisas mais aprofundadas, tipo: ‘que mundo é esse em que vivo?’ e ‘quem são as pessoas a minha volta?’. Ela nunca teria essa oportunidade se não tivesse tido esse contratempo.

Rildo não é um sujeito que pode ser classificado como 'agradável'. Ele é dolorosamente fiel aos seus conceitos. Desfia suas pérolas como algum filósofo frustrado que pretende explicar a vida a partir de sua vivência boêmia. Mas é gostoso ouvir colocações que não são politicamente corretas, já que nos jornais, revistas e TV tudo o que vemos é o óbvio e batido: “não agüentamos mais a violência!”. Roupas brancas de grife desfilando pelas ruas pedindo paz.

– As pessoas se adaptam ao jogo. Para novas conquistas o homem se reuniu para guerrear e criou flechas e pólvora. Se quisesse a paz, teria ficado no seu cantinho, no cultivo familiar, trocando sal e frutas com seus vizinhos. A evolução é a própria face da violência e do caos. Quer coisa mais violenta que o desenho do Pica-Pau?

No ponto de vista de Rildo não há viabilidade na paz. É tão ingênuo quanto tentar fazer o leão não caçar suas presa explicando que a zebra vai sentir dor. A comparação é tão estapafúrdia que seria uma violência ao diálogo tentar ponderar. E ainda que eu quisesse um caminho mais brando para hastear a "bandeira branca" sobre os argumentos de Rildo, não conseguiria. Ele não dá essa opção.

– A verdade é que todo mundo gostaria de ser policial ou bandido. Há glamour na violência. Estar intimamente ligado a uma arma é prazeroso. Vá a uma locadora de filmes e constate: existe a categoria “Engenheiro”? A “Arquiteto”? A “Peixeiro”? Não. Mas existe a “Policial”. Polícia e ladrão é a brincadeira mais recorrente entre a criançada. E criança tem sua própria natureza de tapas e corredor polonês. Precisam disso. Claro que quando não recebem uns bons cascudos de seus pais para se comportarem. O indivíduo só deixa de porradaria quando o policial vem e lhe senta o cacete.

Para Rildo a violência não tem como ser combatida pelo fato de o ser humano não saber conviver sem ela. Seria um mundo enfadonho, macambúzio e... violento! Não seria uma violência dolosa, mas ainda assim as estatísticas iriam surpreender. Triplicariam as mortes nas estradas, já que todos sairiam para passear. Duplicariam os pisoteamentos em shows, pois milhões iriam freqüentar raves e similares. Afogamentos em piscinas e praias em balneários superlotados. Intoxicações com inseticidas. Queimaduras. Atropelamentos. Seria uma catástrofe sem precedentes.

- As pessoas enjoariam de tanto marasmo e falta de perspectivas perversas e sairiam para todos os cantos buscando qualquer coisa que as alegrassem. A figura do diabo seria transformada num boneco de aniversário de criança. E os pugilistas entrariam no ringue com luvas de algodão para poderem fazer uma boa “matinê de cafuné”. Quem pagaria para ver isso? Imagine uma lírica torcida do Flamengo enaltecendo a torcida do Fluminense no Maracanã. Seria até caricato. A essência de uma disputa é justamente a briga. Já começamos brigando desde espermatozóides. Se não houvesse o antídoto da calmaria, o mundo estaria fadado ao cinismo, à falsidade e à desonestidade. Exemplo maior são os nossos políticos, que não atiram nem esfaqueiam. Mas quer violência maior que uma canetada assinando uma lei estúpida? Um salário mínimo que no papel garante tudo e na prática só serve como chacota. Melhor fazer piada que chorar com tanta violência.

Realmente é um mundo esquisito o que Rildo vislumbra... mas e as religiões? Não cumpririam seus papéis pacíficos numa sociedade despojada de violência?

– As religiões, que deveriam ser ícones de paz, fomentam a violência com dogmas intolerantes e intransigentes. O grande trunfo da Igreja são, paradoxalmente, as trevas. Sem elas, a bonança seria apenas um quadro do Rembrandt num consultório psiquiátrico.

Eu normalmente não contraponho as assertivas de Rildo, porque suas definições são, como ele próprio alega, irrepreensíveis. E consiste nisso a diversão espinhosa de um bate-papo com ele.

- Tragédia maior, entretanto, seria o sombrio clima entre um casal impetuoso num mundo sem violência. Entre quatro paredes, o rapaz não poderia nem segurar com volúpia os cabelos de sua amada e muito menos dar uns bons tapas em suas ancas quando a sacanagem esquentasse. Em última análise isso também está no rol de aberrações, de espancamentos, ainda que consentidos.

O mais interessante de Rildo é que seus discursos são despolitizados, mas não são ocos. No caso em questão não dá para acusar o velho como sendo um paladino pró-violência ou um libelo da destruição, já que seu tratado é uma versão sarcástica e estilizada do mundo real. Rildo é o Thomas More ao reverso em meio aos salgadinhos engordurados do Bar do Setembrino.

- Eu repudio frontalmente a violência – diz ele. – O problema é que ela mora em todos os lugares onde há sinais de inteligência. Dê um pedaço de osso para um cachorro e ele será feliz. Dê toneladas de ossadas para um ser humano e ele ficará amargurado com tantos restos mortais à sua disposição.

Seriam os cães mais inteligentes que os homens?

- A busca pela felicidade é traumática, pois nos coloca frente a perguntas sem respostas. A violência, ao contrário, é pura, não precisa de arquétipos, sem falar que é ela quem gera milhões de empregos, de militares a jornalistas. Afinal, notícia ruim é que movimenta a imprensa.

Para Rildo intolerância é a prima da ignorância. Moram juntas e são muito competentes em criar e cuidar da violência. Fazem isso com grande esmero.

– Veja você que um soldado é condecorado ao matar duas pessoas, mas é execrado se transar com alguém do mesmo sexo. A violência prevalece e ainda que lute por seu país, nem ele próprio vai saber quais são os ideais pelos quais luta. Seus líderes dizem que é a luta pela democracia. Mas o que se quer mesmo é a obtenção de riquezas. Ou seja, quem é forte e violento, vence, sai bem na fita, é glorificado e ainda posa de 'bonzinho'."Deus nos ajudou a vencer essa guerra contra os impuros". Como disse Sartre, "o inferno são os outros".

Percebi que o papo desse dia já estava ficando cinzento além da conta. Enfim, para o meu amigo de cerveja não há paz possível. Seria isso? Nem tanto.

– Eu vou te contar qual é a única paz possível: a Jacimeire.
Jacimeire é a garçonete do Setembrino. Mulata gostosa, ela é mais que carinhosa no atendimento aos fregueses, trazendo sempre junto com o pedido um sorriso franco e um espírito alegre. Quando alguém pergunta seu nome ela o fala todo: Jacimeire Francisca da Paz. Acho que faz isso por gostar muito do ‘Paz’ no fim. Nada mais correto, já que sua exuberância acaba com qualquer conflito entre bêbados mais alterados.
ndo jogar o video game da moda, aquele onde se matam centenas em cada fase. Criança de boa índole essa. Pelo menos me chamou de "moço".

Alheia às loucuras dos boêmios, ela trabalha com indescritível préstimo e amor e isso confunde os incautos que acreditam que tal desenvoltura possa ser algum flerte. Mas, que nada. É só uma simpatia transbordante que sempre relaxa a fisionomia rabugenta de alguns, que sempre traz esperança em algo melhor. Melhor que o bolinho de carne de sol, melhor que a tristeza de um mundo confuso.

– Que Paz maravilhosa...

Nesse ponto não há o que discordar dele.

Publicado no livro "Retratos Urbanos"
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=19246

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1 comentários:

Bastante interessante. Parabéns pela criatividade literária.

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