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terça-feira, 17 de junho de 2008

Diário dum Louco

Lu Xun
tradução: Henry Alfred Bugalho

Dois irmãos, cujos nomes não preciso mencionar aqui, eram ambos bons amigos meus durante o ginásio; mas, após uma separação de vários anos, gradualmente acabamos perdendo contato.

Algum tempo atrás, chegou aos meus ouvidos que um deles havia adoecido gravemente e, como eu estava retornando a meu velho lar, interrompi minha viagem para pagar-lhes uma visita, no entanto, encontrei apenas um deles, que me disse que o inválido era seu irmão mais novo.

— Agradeço-o por ter vindo de tão longe para nos ver, ele disse, mas meu irmão se recuperou, há algum tempo, e se mudou para outro lugar, para assumir um cargo oficial.

Então, rindo, ele me apresentou dois volumes do diário de seu irmão, dizendo que neles se podia ver a natureza da doença que o havia acometido e que não havia perigo em mostrá-los a um velho amigo. Eu apanhei os diários, li-os do começo ao fim e descobri que ele havia sofrido de algum tipo de complexo de perseguição. A escrita era em grande parte confusa e incoerente, e ele havia feito algumas insanas asserções; além disto, ele havia se omitido de fornecer datas, assim apenas pela cor da tinta e pelas diferenças na caligrafia que alguém poderia distinguir quando os trechos não haviam sido escritos duma só vez. Contudo, certas seções não eram ao todo desconexas e eu copiei algumas partes para servirem de objeto para pesquisa médica. Não alterei uma única ilogicidade sequer do diário e modifiquei apenas os nomes, mesmo que as pessoas referidas sejam todas interioranas, desconhecidas do mundo e sem importância. E sobre o título, este foi escolhido pelo próprio autor do diário, após sua recuperação, e eu não o alterei.

I
Hoje à noite, a lua está muito brilhante.

Eu não olhei pra ela por mais de trinta anos, então hoje, quando a vi, senti uma incomum exaltação. Comecei a perceber que, durante os últimos trinta anos, eu estive nas trevas; mas agora eu devo ser extremamente cauteloso. Senão, por que aquele cachorro na casa do Chao teria me encarado duas vezes?

Tenho razão para meu medo.

II
Hoje, não há lua, eu sei que isto prenuncia desgraça. Esta manhã, quando saí, cuidadoso, o Sr. Chao tinha um estranho olhar, como se estivesse com medo de mim, como se quisesse me matar. Havia com ele outras sete ou oito pessoas, que falavam de mim sussurrando. E elas estavam com medo de serem vistas por mim. Todas as pessoas pelas quais passei agiam deste modo. A mais corajosa delas escancarou um sorriso pra mim, que me fez ter calafrios dos pés à cabeça, por saber que os preparativos delas estavam completos.

No entanto, eu não estava amedrontado, mas prossegui em meu caminho. Adiante, um grupo de crianças também falava de mim, e o olhar delas eram exatamente como aquele do Sr. Chao, e seus rostos eram duma palidez horrível. Tentei conceber que rancor tais crianças poderiam ter contra mim para fazê-las se comportarem deste jeito. Não consegui evitar de gritar:

— Digam-me! Mas, então, elas fugiram.

Pergunto-me que rancor o Sr. Chao pode ter contra mim, que rancor as pessoas na estrada podem ter contra mim. Não consigo pensar em nada, excetuando que, vinte anos atrás, eu espezinhei o livro de balancetes de vários anos do Sr. Ku Chiu (1), e ele ficou muito ofendido. Apesar de o Sr. Chao não tê-lo conhecido, ele deve ter ouvido algum boato sobre isto e decidiu vingá-lo, então ele e as pessoas na estrada estão conspirando contra mim. Mas as crianças? Naquela época, elas não haviam nem nascido ainda, por que então elas estariam me olhando tão estranhamente hoje, como se tivessem medo de mim, como se quisessem me matar? Isto realmente me assusta, é tão incompreensível e perturbador.

Eu sei. Elas devem ter aprendido com os pais!

III

Não consigo dormir à noite. Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender.

Aquelas pessoas, dentre elas algumas que haviam sido humilhadas pelo juiz, esbofeteadas pela nobreza local, suas mulheres levadas por oficiais de justiça, ou seus pais forçados ao suicídio por credores, nunca pareceram tão assustadas e hostis como ontem.

O mais extraordinário foi aquela mulher, ontem, na rua, que dava palmadas no filho e dizia:

— Seu diabinho! Eu gostaria de comer alguns pedaços seus para aplacar minha raiva!

No entanto, ela olhava para mim todo o tempo. Eu me sobressaltei, incapaz de me controlar; todas aquelas pessoas, rostos esverdeados, dentes longos, começaram a rir escarniçadamente. O velho Chen apressou-se e me arrastou para casa.

Arrastou-me para casa. O pessoal lá de casa fingiu não me conhecer; tinham o mesmo olhar que os outros. Quando entrei no escritório, eles trancaram a porta por fora como se engaiolassem um frango ou um pato. Este incidente me deixou ainda mais perplexo.

Alguns dias antes, um dos nossos inquilinos da Vila Lobato veio relatar o fracasso nas colheitas, e disse a meu irmão mais velho que um notório personagem na vila havia sido espancado até a morte; então algumas pessoas arrancaram o coração e o fígado dele, fritaram-nos em óleo e os comeram, com o propósito de aumentar a coragem deles. Quando eu os interrompi, tanto o inquilino quanto meu irmão me encararam. Apenas hoje percebi que eles tinham o mesmo olhar que aquelas pessoas lá fora.

Só de pensar nisto tenho calafrios do topo da cabeça até as solas dos pés.

Eles comem seres humanos, então podem me comer também.

Percebo que o “comer alguns pedaços seus” dito pela mulher, a risadas daquelas pessoas de rostos esverdeados e dentes longos e a história do inquilino no outro dia eram, obviamente, sinais secretos. Vejo todo o veneno na fala deles, em suas risadas cortantes. Seus dentes são brancos e reluzentes: eles são devoradores de homens.

Apesar de eu não ser uma má pessoa, aparentemente minha situação era delicada desde o dia em que pisoteei os balancetes do Sr. Ku. Eles parecem ter segredos que nem posso imaginar e, se ficarem com raiva, eles chamarão qualquer um de mau-caráter. Lembro-me quando meu irmão mais velho me ensinou a escrever redações — não importava quão bom um homem fosse, se eu apresentasse argumentos contrários, ele marcaria o trecho para mostrar sua aprovação, e se eu defendesse os malfeitores, ele diria:

— Que bom, isto demonstra originalidade.

Como eu posso saber quais são seus pensamentos secretos — especialmente quando eles estão prontos para comer pessoas?

Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender. Em épocas antigas, se não me engano, as pessoas comiam seres humanos com freqüência, mas não estou muito certo disto. Tentei pesquisar sobre o assunto, mas meu livro de História não tem cronologia, e rabiscadas em cada uma das páginas estão as palavras: “Virtude e Moral”. E como eu não conseguia dormir, li-o atentamente durante metade da noite, até que comecei a ver palavras nas entrelinhas, todo o livro preenchido com duas palavras — “Coma pessoas”.

Tais palavras escritas no livro, tais palavras ditas por nosso inquilino, observavam-me estranhamente com um sorriso enigmático.

Eu também sou um homem, e eles querem me comer!

IV

De manhã, sentei-me em silêncio por algum tempo. O velho Chen trouxe o almoço: uma tigela de vegetais e uma de peixe no vapor. Os olhos do peixe estavam brancos e duros, a boca dele estava aberta exatamente como das pessoas que querem comer seres humanos. Após algumas poucas mordidas, eu não conseguia distinguir se os escorregadios bocados eram de peixe ou de carne humana, então vomitei tudo.

Eu disse:
— Velho Chen, diga a meu irmão que estou me sentindo um pouco sufocado e que gostaria de dar uma volta no jardim.

O velho Chen não disse nada, mas saiu, imediatamente retornou e abriu o portão.

Não me mexi, mas esperei para ver como eles me tratariam, certo de que eles não me deixariam ir. Eu tinha certeza! Meu irmão mais velho entrou lentamente, conduzindo um ancião. Havia um brilho assassino nos olhos deste e, temendo que eu percebesse isto, ele abaixou a cabeça, olhando-me de esguelha por detrás de seus óculos.

— Você parece estar muito bem, hoje, meu irmão disse.
— Sim, respondi.
— Convidei o Sr. Ho para vir aqui hoje, meu irmão disse, para examiná-lo.
— Tudo bem, eu disse. Na verdade, eu sabia muito bem que este ancião era um executor disfarçado! Ele simplesmente se muniu do pretexto de sentir meu pulso para ver quão gordo eu estava; ao fazer isto, ele receberia uma cota da minha carne. Mesmo assim, eu não estava com medo. Mesmo que eu não coma homens, minha coragem é maior do que a deles. Estendi meus dois punhos para ver o que ele faria. O ancião se sentou, fechou os olhos, tateou-os por alguns instantes e depois ficou quieto por outros instantes; então ele abriu seus olhos maliciosos e disse:

— Não deixe sua imaginação o controlar. Descanse em silêncio por alguns dias e tudo ficará bem.

Não deixe sua imaginação o controlar! Descanse por alguns dias! Quando eu houver engordado, naturalmente eles terão mais o que comer; mas que bem isto me fará, ou como é que tudo “ficará bem”? Todas estas pessoas querendo comer carne humana e, ao mesmo tempo, tentando sorrateiramente manter as aparências, não ousando agir de imediato, quase me fazem morrer de rir. Eu não conseguia parar de gargalhar, estava tão surpreso. Eu sabia que nesta risada havia coragem e integridade. Tanto o ancião quanto meu irmão empalideceram, estupefatos diante de minha coragem e integridade.

Mas tão somente por eu ser corajoso eles anseiam ainda mais me comer, para ganharem um pouco da minha coragem. O ancião saiu pelo portão, mas antes que estivesse longe, ele disse ao meu irmão, baixinho:

— Deve ser comido logo! e meu irmão aquiesceu. Então você também faz parte disto! Esta estupenda descoberta, apesar de ter me chocado, não era nada mais do que eu já esperava: o cúmplice em devorar-me é meu irmão mais velho!

O devorador de carne humana é meu irmão mais velho!

Eu sou o irmão mais novo dum devorador de carne humana!

Serei comido por outros, mas, mesmo assim, sou o irmão dum devorador de carne humana!

V

Nestes últimos dias, voltei a refletir: suponhamos que o ancião não fosse um executor disfarçado, mas um doutor de verdade; ele mesmo assim seria um devorador de carne humana. Naquele livro sobre plantas medicinais, escrito por seu predecessor Li Shih-chen (2), afirma-se claramente que a carne dum homem pode ser cozida e comida; então como ele ainda insiste que não come homens?

Quanto a meu irmão mais velho, eu também tenho um bom motivo para suspeitar dele. Quando me ensinava, ele me disse com a própria boca:

— Pessoas trocam os filhos para comer. E, uma vez, debatendo sobre um homem mau, ele disse que este não apenas merecia ser morto, como deveria “ter sua carne comida e que se dormisse sobre sua pele...” (3) Eu ainda era jovem, à época, e meu coração se acelerou por um tempo; ele não ficou nem um pouco surpreso com a história que nosso inquilino da Vila do Lobato nos contou, outro dia, sobre comer o coração e o fígado dum homem, mas ficou concordando com a cabeça. Ele é, evidentemente, tão cruel quanto antes. Se é possível que se “troque filhos para comer”, então tudo pode ser trocado, tudo pode ser comido. No passado, eu simplesmente ouvia suas explicações e fazia vista grossa; agora eu sei que quando ele explicava isto para mim, não apenas havia gordura humana nos cantos de sua boca, mas todo seu coração estava inclinado a comer homens.

VI

Trevas. Não sei se é dia ou noite. O cachorro da família Chao começou a latir de novo.

A ferocidade dum leão, a timidez dum coelho, a malícia duma raposa...

VII

Eu conheço o jeito deles; não matarão alguém diretamente, nem ousam, pois temem as conseqüências. Ao invés disto, uniram-se e prepararam armadilhas por todos os lados para me induzirem ao suicídio. O comportamento dos homens e mulheres nas ruas, há dias, e a atitude do meu irmão mais velho nestes últimos tempos torna isto óbvio. O que mais os agrada é que um homem arranque da cintura seu cinto e se enforque numa viga, porque, então, eles podem desfrutar de seus mais caros desejos sem serem culpados de assassinato. Naturalmente, isto faz com que eles gargalhem com deleite. Por outro lado, se um homem está amedrontado ou preocupado com a morte, mesmo que com isto ele emagreça, eles ainda aquiescem em aprovação.

Eles só comem carne morta! Lembro-me de ter lido em algum lugar sobre uma fera medonha, com terrível olhar, chamada “hiena”, que freqüentemente come carne morta. Ela tritura em fragmentos até o maior dos ossos e os engole: o mero pensamento disto é o bastante para aterrorizar alguém. Hienas são parentes dos lobos, e lobos pertencem à espécie dos cães. Outro dia, o cão na casa do Chao me fitou várias vezes; é óbvio que ele também faz parte deste ardil e se tornou cúmplice deles. O ancião baixou o olhar, mas isto não me enganou!

O mais deplorável é o meu irmão mais velho. Ele também é um homem, então por que não está com medo, por que esta conspirando com os outros para me comer? O hábito faz com que se pense que isto não é mais um crime? Ou ele endureceu seu coração para fazer algo que sabe ser errado?

Ao amaldiçoar os devoradores de homens, devo começar por meu irmão, e, ao dissuadir os devoradores de homens, devo começar por ele também.

VIII

Na verdade, tais argumentos deveriam tê-los convencido há muito tempo...

De repente, alguém entrou. Ele tinha apenas uns vinte anos e eu não enxergava seus traços com clareza. Sua cara vinha ornamentada com sorrisos, mas quando ele me cumprimentou, seu sorriso não parecia autêntico. Perguntei a ele:

— É certo comer seres humanos?

Ainda sorrindo, ele respondeu:

— Quando não há escassez, por que alguém comeria seres humanos?

Percebi imediatamente que ele era um deles; mas ainda convoquei coragem para repetir minha pergunta:

— É certo?
— O que o leva a perguntar tal coisa? Você realmente gosta duma piada... Está um dia muito bonito hoje.
— Está bonito, e a lua está muito brilhante. Mas quero perguntar a você: é certo?
Ele olhou-me desconcertado e murmurou:
— Não...
— Não? Então por que eles ainda fazem isto?
— Do que você está falando?
— Do que estou falando? Eles estão comendo homens agora na Vila do Lobato e você pode encontrar isto escrito pelos livros, em fresca tinta vermelha.

A expressão dele mudou e ele ficou terrivelmente pálido.
— Pode ser, ele disse, encarando-me, sempre foi assim...
— É certo porque sempre foi assim?
— Recuso-me a discutir estes assuntos com você. De qualquer modo, você não deveria falar sobre isto. Qualquer um que fala sobre isto está errado!

Sobressaltei-me e esbugalhei meus olhos, mas o homem havia desaparecido. Eu estava encharcado de suor. Ele era bem mais novo do que meu irmão, mas mesmo assim ele fazia parte disto. Deve ter sido ensinado por seus pais. E temo que ele já tenha ensinado seus filhos: é por isto que as crianças me olham com tamanha ferocidade.

IX

Querem comer homens, mas, ao mesmo tempo, têm medo de eles próprios serem comidos, assim todos se entreolham com a mais profunda das suspeitas...

Como a vida seria confortável para eles se pudessem se livrar de tais obsessões e fossem trabalhar, caminhar, comer e dormir sossegados. Eles tinham de dar apenas um passo. Mesmo assim, pais e filhos, maridos e esposas, irmãos, amigos, professores e estudantes, inimigos jurados e até estranhos, todos se reuniram nesta conspiração, desencorajando-se mutuamente e evitando que os outros dessem este passo.

X

De manhã cedo, fui procurar meu irmão mais velho. Ele estava do lado de fora da porta de entrada, olhando para o céu, quando aproximei-me dele pelas costas, fiquei entre ele e a porta e, com excepcional equilíbrio e educação, disse a ele:

— Irmão, tenho algo para lhe dizer.
— Bem, o que é? — ele perguntou, rapidamente se virando em minha direção e aquiescendo.
— É pouco, mas muito difícil de se dizer. Irmão, provavelmente todos os povos primitivos comiam carne humana, no princípio. Depois, porque a visão deles havia mudado, alguns deles pararam, e porque tentavam ser bons, ele se tornaram homens, tornaram-se homens de verdade. Mas alguns ainda comem — assim como os répteis. Alguns se tornaram peixes, pássaros, macacos e, por fim, homens; mas alguns não tentaram ser bons e continuam ainda répteis. Quando aqueles que comem homens se comparam àqueles que não comem, como eles devem se envergonhar. Provavelmente se envergonham muito mais do que os répteis diante dos macacos. Em épocas antigas, Yi Ya cozinhou seu filho para Chieh e Chou comerem; esta é a velha história (4). Mas, na verdade, desde a criação de céu e terra por Pan Ku, homens têm comido uns aos outros, desde o tempo do filho de Yi Ya até o tempo de Hsu Shi-lin, e desde o tempo de Hsu Hsi-lin (5) até o homem que foi pego na Vila do Lobato. Ano passado, eles executaram um criminoso na cidade, um tuberculoso molhou um pedaço de pão no sangue dele e o lambeu. Eles querem me comer e é claro que eu não posso fazer nada sozinho; mas por que você se uniria a eles? Como devoradores de homens, eles são capazes de qualquer coisa. Se eles me comerem, podem comê-lo também; membros dum mesmo grupo podem comer uns aos outros. Mas se vocês mudarem seus hábitos imediatamente, então todos terão paz. Apesar de isto ocorrer desde tempos imemoriais, hoje nós podemos fazer um esforço especial para sermos bons e dizer que isto não deve ser feito! Tenho certeza de que você pode dizer isto, irmão. Outro dia, quando o inquilino queria que você abaixasse o aluguel, você disse isto era impraticável.

A princípio, ele apenas sorriu cinicamente, então um brilho assassino surgiu em seus olhos e, quando eu falei do segredo deles, ele empalideceu. Do outro lado do portão, havia um grupo de pessoas, incluindo o Sr. Chao e seu cão, todos esticando os pescoços para espiarem. Eu não conseguia ver seus rostos, pois eles pareciam estar mascarados com panos; alguns deles eram pálidos e assustadores, escondendo suas risadas. Eu sabia que eles eram um bando, todos comedores de carne humana. Mas eu também sabia que nem todos pensavam de maneira semelhante. Alguns deles pensavam que os homens deveriam ser comidos, pois sempre havia sido assim. Alguns deles sabiam que não deveriam comer homens, mas ainda assim tinham vontade; e eles tinham medo que as pessoas descobrissem seu segredo; assim, quando me ouviram, eles se enfureceram, mas ainda assim tinham um cínico sorriso amarelo.

De repente, meu irmão os olhou com fúria e gritou alto:
— Saiam daqui, todos vocês! Qual é o sentido em ficar olhando para um louco?

Então entendi parte do ardil deles. Eles nunca estariam dispostos a mudar sua posição e seus planos já estavam traçados; eles haviam me estigmatizado como um louco. No futuro, quando eu fosse comido, não apenas não haveria problema algum, como as pessoas ficariam provavelmente gratas a eles. Quando o nosso inquilino falou dos vilões comendo um mau sujeito, era exatamente o mesmo artifício. Este é o velho truque deles.

O velho Chen veio também, em ótimo humor, mas eles não conseguiam me calar, eu tinha de falar àquelas pessoas:

— Vocês devem mudar, mudar de todo o coração! eu disse. Quase todos vocês sabem que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens. Se não mudarem, vocês se comerão uns aos outros. Apesar de muitos terem nascido, eles serão eliminados pelos homens de verdade, assim como os lobos são mortos por caçadores. Assim como répteis!

O velho Chen espantou todo mundo. Meu irmão desapareceu. O velho Chen me aconselhou a voltar para meu quarto. O quarto estava um breu. As traves e vigas tremiam sobre minha cabeça. Após tremerem por algum tempo, elas aumentaram de tamanho. Empilharam-se sobre mim.

O peso era tão grande que eu não podia me mover. Elas significavam que eu deveria morrer. Eu sabia que o peso era falso, então eu lutei, coberto de suor. Mas eu tinha de dizer:

— Vocês devem mudar imediatamente, mudar de todo o coração! Vocês devem saber que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens...

XI

O sol não brilha, a porta não está aberta, duas refeições ao dia.

Peguei meus hashi, então pensei no meu irmão mais velho; agora sei como minha irmã caçula morreu: foi tudo por causa dele. Minha irmã tinha apenas cinco anos, naquele tempo. Ainda consigo me lembrar quão adorável e apaixonante ela era. Mamãe chorou e chorou, mas ele implorou para que ela não chorasse, provavelmente porque ele a havia comido e o choro dela o envergonhava. Como se eles tivessem algum senso de vergonha...

Minha irmã havia sido comida por meu irmão, mas eu ainda não sei se mamãe percebeu isto ou não.

Acho que mamãe devia saber, mas, quando chorou, ela não disse isto com franqueza, provavelmente porque ela também pensava que aquilo fosse apropriado. Lembro-me quando eu tinha quatro ou cinco anos, sentado no frescor do vestíbulo, meu irmão me disse que se os pais dum homem estivessem doentes, ele deveria cortar um pedaço de sua pele, cozinhá-lo para eles, se ele desejasse ser considerado como um bom filho; e mamãe não o contradisse. Se um pedaço poderia ser comido, obviamente que o todo também pode. Ainda assim, só de pensar naquele lamento faz meu coração ainda sangrar; esta é a coisa mais extraordinária sobre isto!

XII

Não suporto pensar sobre isto.

Acabei de constatar que tenho vivido todos estes anos num lugar onde, por milhares de anos, eles têm comido carne humana. Meu irmão havia acabado de se tornar o encarregado da casa quando nossa irmã morreu, e ele deve ter posto a carne dela em nosso arroz e em nossas refeições, fazendo com que nós a comêssemos involuntariamente.

É possível que eu tenha comido vários pedaços da carne na minha irmã sem saber e que agora será a minha vez...

Como pode um homem semelhante a mim, após quatro mil anos de história de filantropia — mesmo que eu não soubesse nada, a princípio —, ter a esperança de encarar um homem de verdade?

XIII

Será que ainda há crianças que não comeram homens? Salvem as crianças....

Abril de 1918
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Notas
1. Ku Chiu significa “Tempos Antigos”. Lu Hsun tem em mente a longa história de opressão feudal na China.
2. Um farmacologista famoso (1518-1593), autor de Ben-cao-gang-um, a Materia Medica.
3. Estas citações são do clássico Zuo Zhuan.
4. De acordo com os registros antigos, Yi Ya cozinhou seu filho e o presenteou ao Duque Huan de Chi que reinou de 685 a 643 a.C. Chieh e Chou foram tiranos duma época primitiva. O louco cometeu um equívoco aqui.
5. Um revolucionário no final da dinastia Ching (1644-1911), Hsu Hsi-lin foi executado em 1907 por assassinar um oficial Ching. Seu coração e fígado foram comidos.


Biografia
Lu Xun era o pseudônimo de Zhou Shren (25 de setembro de 1881 - 19 de outubro de 1936), um dos maiores autores chineses do século XX. Considerado o fundador da moderna literatura baihuam, Lu Xun foi contista, editor, tradutor, crítico e ensaísta. Ele foi um dos fundadores da Liga Chinesa de Escritores de Esquerda em Xangai.
A obra de Lu Xun exerceu grande influência após o Movimento Quatro de Maio, a ponto de ser exaltado pelo regime comunista após 1949. O próprio Mao Tse-Tung foi um admirador das obras de Lu Xun durante toda a vida. Apesar de simpatizar com o movimento comunista chinês, Lu Xun jamais se afiliou ao Partido, mesmo sendo um ardoroso socialista, como proferido em seus textos.

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2 comentários:

hi, I'm Chinese, recently learning Portuguese, just came across this post per chance, for I was looking for something in Portuguese about Chinese literature. As far as I can make out, this translation is great. Thanks for your sharing. Obrigado!

Hi, Wei.

Thanks for your visit. Actually, this translation was done from an English translation of a Lu Xun short-story. In this kind of second degree translation it's inevitable to have some slight (sometimes some great) differences of meaning between the source text and the translation.
Anyway, I'm glad to know your opinion. If you need any help with your Portuguese studies, feel free to contact me.

Henry.

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