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segunda-feira, 21 de abril de 2008

Delta T


Marcia Szajnbok



Tempo zero:
Olhos nos olhos, ambos estáticos. Devagar, ele pensa, devagarzinho para não assustá-la... Não queremos que ela fuja, certo?... A mão direita parada, a esquerda desliza sutil pela parede, lenta, quadro a quadro... Num átimo, a alcança! Tão rápido... Sentia seu pequeno corpo frio sob os dedos, mas o olhar não fora capaz de acompanhar o movimento. Agora lá estava: presa. Sua. Sorria, gozando a doçura da vitória sobre o mais fraco. Covardia? Por certo, não. Poder, talvez, um treino, um jogo, um faz de conta... Perdido na imagem de si como rei, ou general, ou ditador, não notou que ela era capaz de tão estratégica fuga: deixando para trás um pedaço de si, um resto de corpo mesmo que ainda vivo, escapara... E agora, tudo o que tinha nas mãos era isso: um resto. Um pedaço de cauda de lagartixa que o menino, derrubado de volta à realidade, atira longe, tomado de raiva e despeito. Para que serve afinal um bicho desses? , pensa, em frustrada tentativa de consolo. No íntimo, porém, não se engana. Foi-se a lagartixa, foi-se o resto da cauda abandonada, ficou a dor. Um ponto doloroso no meio do peito, atrás do osso... Estranho osso de nome esterno, justo esse que ficava tão dentro... Tentou jogar bola, saiu a andar, comeu doce de leite. O dia terminou sem surpresas. À noite, chorou sozinho, escondido pela escuridão até de si mesmo. Onde já se viu, menino chorar por uma coisa dessas? Mas chorava, chorava porque doía, doía imensamente aquela falta, aquela partida sem adeus.
Tempo x diferente de zero:
O olhar fixo sobre a porta fechada. Imóvel, recortado do ambiente, não se descuida da expectante entrada. Mas ela não vem. Ela nunca chega. Por mais que procure disfarçar de si a própria certeza, ele sabe, convicto: não chegará. Não voltará. Nas mãos apenas um pedaço de pano azul, o resto, a sobra morta do que fora corpo e agora pura ausência. Um pedaço de pano-cauda, da mulher-lagartixa para sempre perdida. Dor.

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2 comentários:

É seu!!! Eu sempre quis saber de quem era, Marcia. Na época, acabei esquecendo de perguntar. É, sem sombra de dúvida, o "conto-vestibular" mais bonito que já vi na Oficina.

Parabéns, Doutora.

Márcia... Que dizer?
Um texto maravilhoso! Muito, muito poético. Suave, singelo...
Gostei demais!
É o tipo de texto que eu gostaria de escrever. Um dia eu chego lá, rs...

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