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terça-feira, 8 de abril de 2008

Arte

Volmar Pereira Camargo Junior




Um par de olhos observava por detrás do vidro uma silhueta feminina deformar-se lentamente. Encontrou-a escondida em um dos cômodos da própria casa. Estava nua. Assistia às pequenas mãos e os pés, delicados, minúsculos, tocando o aço fervente, e em pouco tempo, queimando. Os braços e as pernas, curvando-se em direções não-naturais sob os efeitos da temperatura. O cabelo, antes louro e sedoso, misturando-se indistintamente a todo o resto. Ele achava curioso: a vítima era em tudo semelhante a uma mulher adulta, porém, em tamanho menor. Definitivamente, concluiu o carrasco, ela não era como uma mulher, pois ele sabia que um tanto abaixo do umbigo, na parte onde as pernas se uniam, nas mulheres mais velhas havia pêlos. Na da pequena que o calor consumia, era lisa como o resto. Os olhos aproximaram-se do vidro – ansiavam pelo desfecho. Admirou-se ao notar que o rosto de sua cativa foi a última porção a desintegrar-se pelo fogo, conservando até o fim um sorriso casto e estúpido. Já não era mais um corpo, mas uma massa amorfa e enegrecida. Sem pressa, o algoz levou os dedos até um dos dispositivos do instrumento de sua arte, interrompendo gradualmente o alento do fogo até as chamas azuladas extinguirem. Riu. Em silêncio, para não despertar a atenção da vizinhança. Esqueceu-se de que o cheiro poderia atrair mais curiosidades que qualquer gargalhada. Assim mesmo, riu satisfeito e sem fazer ruído por longos instantes.

Não teria problemas em evitar os intrometidos, os que sempre investigavam-no sobre o que fazia como se tudo fosse condenável. Tinha em abundância o que mais necessitava: criatividade e tempo. A casa era cercada por um arvoredo sombrio. O que desejasse ocultar aos curiosos tinha naquele labirinto de troncos, folhas, arbustos, sombras, formigas e terra o esconderijo perfeito. Especialmente o que fosse preciso manter em sigilo. Arrastou para lá sua última obra.

Despreocupado, percorreu o espaço entre a casa e o bosque até mergulhar em sua sombra. A terra não era dura, e ele era habituado a ocultar coisas sob o solo. Assim, com as mãos, cavou. Jogou no buraco o pouco que restou da loura. Sorriu, contemplando-a. Lembrou-se que ali mesmo, a poucos metros, ocultara outras artes suas: a ruiva, que atropelou; a negra, que usou em seus experimentos com água sanitária; até mesmo o moço que serviu de alvo para a prática de tiro com arco. Ninguém jamais soube o que lhes aconteceu. Tinha as mãos, principalmente as reentrâncias debaixo das unhas, encardidas pelo negrume da terra do bosque, tantas vezes havia ali enterrado seus segredos. Atravessou, imundo, o caminho de volta. À distância, viu alguém chegar em casa pelo portão da rua. Abalou-se no mesmo instante. Novamente, teria de responder perguntas.

***


Cássia chega da escola. O irmão está no gramado, com as mãos, os pés, a camisa, tudo sujo de terra.

— E daí, porquinho?!

Antes da resposta, a menina percebe algo, e apruma o nariz como quem está farejando.

— Que cheiro de queimado!

— Bah, nem senti. — responde o menino, escondendo as mãos instintivamente.

— Credo, piá! Como não? — diz Cássia ao abrir a portinhola do forno do fogão a gás. Dentro há tanto o cheiro quanto uns restos de plástico derretido. — Acho que a vó esqueceu alguma coisa no forno de novo. O que será que era?

— Acho que era um pote — diz o menino, olhando curioso, como se realmente não soubesse de que se trata.

— Bom, seja o que for, Eninho, vai brincar lá fora, vai. Eu vou limpar isso daqui antes que a vó ou a... — faz uma careta de desdém —... Luciana cheguem. Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta podre de sujo, guri!

— Ah, não. Eu tomei banho ontem.

— ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda com a vó, daí. Agora, xispa!

— Por que tu quer que eu saia? Vai brincar de boneca?

— Eu não brinco de boneca, pirralho!

— Ah, é verdade! Tu tem catorze, né?! Esqueci que tu “já é mocinha” — ri.

— Sai daqui, merda! Vai achar o que fazer! Olha aí, ta sujando todo o chão da cozinha! — Cássia pega uma vassoura, brandindo-a na direção do caçula. — Sai!

Enio sai, sem reclamar muito. Até à tardinha, o menino atira pedras nas pombas com o bodoque. Ao cair da noite, janta e faz suas preces. Já deitado, ganha um beijo e um “Boa Noite” da avó. De olhos fechados, quase dormindo, planeja o que fará no dia seguinte com outra das bonecas da irmã.

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