MIA COUTO: DUAS RECOMENDAÇÕES NUMA RESENHA
TERRA SONÂMBULA E O OUTRO PÉ DA SEREIA
Marcia Szajnbok
Antonio Emílio Leite Couto, que assina suas obras como Mia Couto, nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. Jornalista e biólogo, sua primeira obra publicada foi Raiz de Orvalho (1983), uma coletânea de poesias. A esse, seguiram-se contos, crônicas e, a partir de 1992, romances.
O primeiro deles, Terra Sonâmbula, foi relançado no Brasil em 2007 pela Companhia das Letras. O autor tece duas histórias aparentemente paralelas, ambientadas num país devastado pela guerra civil, retratando a profusão de impulsos e emoções que tomam o menino Muidinga, o velho Tuhair e o personagem morto, Kindzu, que fala através de seus diários. Numa prosa por vezes fantástica, outras poéticas, Mia Couto faz um elogio à própria arte de escrever e à função de alimento da alma desempenhada pela palavra escrita.
O mais recente, O Outro Pé da Sereia, foi lançado pela mesma Companhia das Letras em 2006, simultaneamente a seu lançamento em Portugal pela editora Caminho. O romance desenvolve duas tramas: uma protagonizada pelo jesuíta Gonçalo da Silveira, que parte de Goa em 1560, com a missão de catequizar o imperador do Monomotapa, região de fronteira entre o Zimbabwe e Moçambique; a outra se passa em 2002, tendo como cenário as dificuldades sociais e culturais de um país ainda cheio de seqüelas depois de dez anos do término da guerra, onde um casal de antropólogos chega em busca de um libelo contra a escravidão colonial e de um universo nativo, representado pela personagem Mwadia Malunga. O ponto de união entre as duas tramas é uma imagem de Nossa Senhora que pertencera à nau portuguesa, identificada pelos africanos a Kianda, uma deusa das águas na crença local.
Nos dois romances Mia Couto nos apresenta um retrato crítico do atual Moçambique, ressaltando a ambigüidade que permeia a relação da cultura nativa com a colonização portuguesa. Nem um pouco panfletária, tal crítica é estabelecida a partir do lirismo e da ironia com que descreve as várias facetas de uma cultura que se desenvolve a partir da relação colonizador-colonizado, apontando ora para a incorporação e miscigenação de valores, ora para o rompimento e hostilidade que desembocam na guerra.
Tudo isso é exposto num texto primoroso, que prende a atenção do leitor, que encanta pela forma como mistura palavras do vernáculo português, a termos da língua kafre e a neologismos produzidos com liberdade poética. Uma verdadeira viagem no tempo e no espaço, que curiosamente em muitos momentos nos reconduz, nós brasileiros, a nossa própria relação com a cultura que herdamos e produzimos.
O primeiro deles, Terra Sonâmbula, foi relançado no Brasil em 2007 pela Companhia das Letras. O autor tece duas histórias aparentemente paralelas, ambientadas num país devastado pela guerra civil, retratando a profusão de impulsos e emoções que tomam o menino Muidinga, o velho Tuhair e o personagem morto, Kindzu, que fala através de seus diários. Numa prosa por vezes fantástica, outras poéticas, Mia Couto faz um elogio à própria arte de escrever e à função de alimento da alma desempenhada pela palavra escrita.
O mais recente, O Outro Pé da Sereia, foi lançado pela mesma Companhia das Letras em 2006, simultaneamente a seu lançamento em Portugal pela editora Caminho. O romance desenvolve duas tramas: uma protagonizada pelo jesuíta Gonçalo da Silveira, que parte de Goa em 1560, com a missão de catequizar o imperador do Monomotapa, região de fronteira entre o Zimbabwe e Moçambique; a outra se passa em 2002, tendo como cenário as dificuldades sociais e culturais de um país ainda cheio de seqüelas depois de dez anos do término da guerra, onde um casal de antropólogos chega em busca de um libelo contra a escravidão colonial e de um universo nativo, representado pela personagem Mwadia Malunga. O ponto de união entre as duas tramas é uma imagem de Nossa Senhora que pertencera à nau portuguesa, identificada pelos africanos a Kianda, uma deusa das águas na crença local.
Nos dois romances Mia Couto nos apresenta um retrato crítico do atual Moçambique, ressaltando a ambigüidade que permeia a relação da cultura nativa com a colonização portuguesa. Nem um pouco panfletária, tal crítica é estabelecida a partir do lirismo e da ironia com que descreve as várias facetas de uma cultura que se desenvolve a partir da relação colonizador-colonizado, apontando ora para a incorporação e miscigenação de valores, ora para o rompimento e hostilidade que desembocam na guerra.
Tudo isso é exposto num texto primoroso, que prende a atenção do leitor, que encanta pela forma como mistura palavras do vernáculo português, a termos da língua kafre e a neologismos produzidos com liberdade poética. Uma verdadeira viagem no tempo e no espaço, que curiosamente em muitos momentos nos reconduz, nós brasileiros, a nossa própria relação com a cultura que herdamos e produzimos.
DAVID COPPERFIELD E O MISTERIOSO MUNDO DAS TRADUÇÕES NO BRASIL
Henry Alfred Bugalho
Quem não fala (ou não lê) outro idioma, tem momentos difíceis no Brasil quando se trata de ter acesso a grandes clássicos da Literatura.
A lista de autores e obras ignoradas por tradutores e por editoras é enorme, como se não houvesse interesse em olhar para o passado, como se o simples fato de mencionar o título da obra nos prescindisse de lê-la. Quanto maior a antigüidade do texto, mais esquecida ela se encontra. No entanto, isto não implica em olvidar apenas alguns mestres gregos ou latinos, ou autores bizantinos, ou clássicos medievais. Há muito a ser feito no campo da tradução, e isto inclui até autores inquestionáveis, tal qual Charles Dickens, cujas obras serviram de inspiração ao maior expoente do romance brasileiro, Machado de Assis.
David Copperfield é um romance de maturidade do autor e o que possui maior elementos autobiográficos. Acompanhamos o protagonista, David Copperfield, desde seu nascimento até a idade adulta, quando, após muitas desventuras - a morte do pai, o segundo casamento da mãe, um padrasto opressor, o falecimento da mãe, um mergulho na mendicância, o trabalho árduo na indústria -, ele se torna um autor bem-sucedido, quase uma símile da vida de Charles Dickens.
Quem já teve a oportunidade de ler alguma obra deste romancista, seja no original inglês, seja em traduções (Machado de Assis chegou a traduzir algumas obras de Dickens), está familiarizado com sua escrita brilhante, precisa e irretocável.
Dickens é daquela estirpe de gênios literários que se destaca pela legião de personagens memoráveis que criou, ao lado de Shakespeare, de Cervantes ou de Balzac, que invadem o imaginário coletivo e se destacam de suas obras. David Copperfield é o arquétipo dum jovem idealista e puro, noções sustentadas pelo próprio Dickens, que via em sua escrita um caminho para mudar o mundo e instigar esperança numa nação ainda estupefata diante das maravilhas e mazelas da Revolução Industrial. Outro grande talento de Dickens é a sua capacidade de alternar momentos dramáticos e cômicos, às vezes num breve intervalo de página, brincando com as emoções dos leitores, chegando até a arrancar lágrimas ou risos durante a leitura.
Infelizmente, nenhum tradutor brasileiro se aventurou no universo de David Copperfield; há resumos, talvez mais mutilações, com 100 ou 50 páginas, mas certamente bem distantes do deslumbramento existente nas mil páginas do original em inglês.
A lista de autores e obras ignoradas por tradutores e por editoras é enorme, como se não houvesse interesse em olhar para o passado, como se o simples fato de mencionar o título da obra nos prescindisse de lê-la. Quanto maior a antigüidade do texto, mais esquecida ela se encontra. No entanto, isto não implica em olvidar apenas alguns mestres gregos ou latinos, ou autores bizantinos, ou clássicos medievais. Há muito a ser feito no campo da tradução, e isto inclui até autores inquestionáveis, tal qual Charles Dickens, cujas obras serviram de inspiração ao maior expoente do romance brasileiro, Machado de Assis.
David Copperfield é um romance de maturidade do autor e o que possui maior elementos autobiográficos. Acompanhamos o protagonista, David Copperfield, desde seu nascimento até a idade adulta, quando, após muitas desventuras - a morte do pai, o segundo casamento da mãe, um padrasto opressor, o falecimento da mãe, um mergulho na mendicância, o trabalho árduo na indústria -, ele se torna um autor bem-sucedido, quase uma símile da vida de Charles Dickens.
Quem já teve a oportunidade de ler alguma obra deste romancista, seja no original inglês, seja em traduções (Machado de Assis chegou a traduzir algumas obras de Dickens), está familiarizado com sua escrita brilhante, precisa e irretocável.
Dickens é daquela estirpe de gênios literários que se destaca pela legião de personagens memoráveis que criou, ao lado de Shakespeare, de Cervantes ou de Balzac, que invadem o imaginário coletivo e se destacam de suas obras. David Copperfield é o arquétipo dum jovem idealista e puro, noções sustentadas pelo próprio Dickens, que via em sua escrita um caminho para mudar o mundo e instigar esperança numa nação ainda estupefata diante das maravilhas e mazelas da Revolução Industrial. Outro grande talento de Dickens é a sua capacidade de alternar momentos dramáticos e cômicos, às vezes num breve intervalo de página, brincando com as emoções dos leitores, chegando até a arrancar lágrimas ou risos durante a leitura.
Infelizmente, nenhum tradutor brasileiro se aventurou no universo de David Copperfield; há resumos, talvez mais mutilações, com 100 ou 50 páginas, mas certamente bem distantes do deslumbramento existente nas mil páginas do original em inglês.
1 comentários:
Quando eu trabalhei numa livraria, eu sempre olhava com curiosidade para os livros do Mia Couto. Inclusive, demorei até descobrir que era homem, pois pensei que Mia fosse um nome (ou apelido) feminino.
Realmente é deslumbrante o universo das línguas. Só em pensar que o português é a quarta língua mais falada no mundo e que há muitos autores bons fora dos grandes focos lusósofonos (Portugal e Brasil) tenho aquela sensação de como somos pequenos em nossos horizontes.
Inclusive, eu tenho procurado por autores lusófonos de países africanos, na tentativa de descobrir algum autor que possa contribuir com a Samizdat.
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