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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Aos cacos



De um dia para o outro, coisas começaram a cair na cozinha.
Pratos, copos, xícaras e canecas amanheciam despedaçados no chão.
Talheres, cestas, latas e sacos de condimentos permaneciam mudos e intactos em seus postos. a aparência plácida e estática, como se sua segurança dependesse de seu silêncio e alienação.
A partir de então, quase dois anos agora, todas às manhãs era a mesma coisa: eu levantava, ia à cozinha, recolhia pacientemente os despojos de minha louça e, agachada, analisava ali mesmo se seu destino seria o lixo ou a recuperação.
Muitas peças eram salvas, devo admitir. Ali perto de onde tudo caía havia um tubinho de cola, desses que tudo grudam, aguardando de prontidão. Então eu o passava lentamente nas partes separadas e, como se montando um quebra-cabeça, resgatava aos cacos sua integridade.
Outras peças não. Algumas viravam verdadeiros estilhaços, outras perdiam lascas que não mais se encaixavam ou que de tão finas saltavam para longe e sumiam de meu campo de visão.
A hora era sempre a mesma, eu via e sentia tanto pela claridade do céu quanto pela temperatura do quarto: no prenúncio do amanhecer. Hora certa e medida? Não sei. Era quando o céu não estava mais tão negro e quando a temperatura subia fazendo com que eu me livrasse do lençol e da manta com um movimento insistente dos pés. Então, em sequência a esse movimento de cobertas sendo jogadas no chão, ouvia o estalo e o estilhaço das louças se espatifando.
Eu ouvia e aguardava. Às vezes, tentava até adivinhar. Quantas seriam? Quantos copos ou quantos pratos?  Quais itens seriam privilegiados?
A quebradeira demorava uns dez minutos, um item de cada vez, em queda livre, sem impulso: Plaft... plaft.... plaft.  Com o tempo, fui desenvolvendo a capacidade de perceber qual peça caía e qual o intervalo entre uma e outra.
Os copos de vidro produziam um som mais aberto e alto, pareciam explodir: Plaaaft! As canecas de cerâmica, um som mais fechado, mais baixo, como se com elas tudo fosse mais sério: Plâft.  As xícaras de porcelana branca eram a que produziam mais barulho, as mais escandalosas, como quem perde a virgindade à força: Pláááááft! Pláááááft! Pláááááft! Quanto aos pratos, engraçado, não havia muita diferença entre eles.  Produziam um baque... e um crack. Uma vez só, normalmente ao meio.
O intervalo entre as quedas variava também. Se começasse pelos copos, em três minutos cairiam  as xícaras  de porcelana branca  ou em cinco minutos as canecas. Plaaaft... Pláááááft!... Plâft.
Quando os pratos tomavam parte na quebradeira ouviam-se cracks repetidos entre plafts, pláfts e plâfts.
Assim sucessivamente, diariamente, rotineiramente.


Um dia levei um jarro para casa, um belo jarro azul-marinho. Cerâmica pesada, artesanal, com acabamento esmaltado e arabescos dourados em tom fechado − “ouro velho” presumi.
Sem querer envolvê-lo no ritual suicida de minhas louças utilitárias, acomodei-o numa prateleira distante, bem à altura dos olhos.
 De tão pesado, não caberia usá-lo. Ficaria em minha cozinha como peça decorativa e admirável, que todos os dias eu admiraria tanto por sua beleza quanto por sua sofisticação.
Meses de calmaria experimentou o meu o jarro, como mero expectador dos espetáculos matinais até que, no espaço de algumas semanas, começou a trocar de lugar.
Passei então a não mais saber onde o veria. Alternava-se nas prateleiras, ora subia ora descia. E às vezes aparecia sobre a mesa, como uma sentinela.
Tive medo de que se quebrasse, mas isso não acontecia. O que era bom, pois não conseguiria repô-lo com a facilidade que repunha as louças.
Caso quebrado, ou viraria caco colado ou lixo triturado em caminhão.

Eu preparava o café naquela manhã, a água esquentava na chaleira, o pó aguardava no filtro de papel.  Eu lia o jornal, sentada à mesa quando ouvi o ruído do jarro se arrastando.
Um arrastar lento, pausado, quase inaudível.
Levantei e fiquei olhando para ele. Mexeu-se novamente, como se executando uma dança compassada. Era a primeira vez que isso acontecia.
Me aproximei, alisei-o com minhas mãos mornas e a dança cessou.
Mudei de posição à mesa e continuei a ler, os olhos ora no jornal, ora nas prateleiras.
Foi quando tive a ideia.  
À noite, quando aquela mesma hora chegasse, quando percebesse o clarear do céu e a elevação da temperatura, eu não aguardaria mais no quarto.  Chutaria as cobertas para o chão e levantaria em seguida. Iria então pé ante pé à cozinha e veria in loco o que há anos acontecia.
Acabei o café e saí para a biblioteca. Teria um expediente cheio, muitos livros para receber e catalogar.
O dia transcorreu normalmente, fui e voltei do trabalho. À noite, me despedi de meu namorado que há dias insistia conhecer minha casa. Tenho tia doente e acamada, caso perdido, coitada, explicava a ele. Melhor não ir por enquanto, não seria agradável.
Ele concordava relutante e ia embora.
Voltei para casa, acendi a luz da sala e larguei bolsa e pastas sobre o sofá. Logo em seguida,  entrei no quarto e abri a janela para arejar. Fechada durante todo o dia, o ar vicioso da casa me sufocava.
Descansei um pouco, tomei banho e me preparei para a noite. Os filmes na tevê não me interessavam, comédias românticas ficção da ficção. O livro na cabeceira me deu sono. Dormi.
Então acordei àquela mesma hora e, como planejado, chutei as cobertas e logo me levantei. Saí sorrateiramente do quarto, atenta a qualquer ruído vindo da cozinha, e segui.
Nada.
Encostei o ouvido à porta da cozinha e fiquei aguardando do lado de fora, espiando pela fenda entre as dobradiças. Devem saber que estou aqui, pensei.
Então entrei e, protegida pela geladeira, fiquei olhando para as louças, para os jarros. Tudo parado.
Minutos depois, a dança começou aos estalos que, num crescendo, transformou-se em frenesi. E as louças foram saltando para os meus pés, para cima de mim.
De repente, como se numa explosão de loucura e vigor, todas as portas dos armários se abriram e todos os copos, pratos, potes, xícaras me atacaram, jogando-se em minha direção.  Estilhaçavam-se na lajota fria e ricocheteavam em cima de mim.
Fui sendo alvejada, jogada para trás, sentindo cortes rasgarem minha pele e cacos pontiagudos abrirem furos em minhas pernas, em meus seios, em meu rosto.
Protegi os olhos e comecei a gritar, a chorar de pânico e dor. Apavorada, saí correndo da cozinha e subi as escadas. Se ficasse ali, morreria.
Num impulso, abri ofegante a porta do quarto de minha tia. Ela estava deitada, esticada, a camisola escura tomada de pó.  Tudo fechado, o tal ar viciado, reconheci, vinha de lá. Há quanto tempo estaria assim? Há quanto tempo não a via?
Então a olhei de perto.
Com os olhos vidrados no rosto de porcelana branca, virou lentamente o pescoço num grosso e sonoro arrastar. Tinha a face craquelê, a pele envernizada. Olhou-me sem ver, mexeu músculos frágeis e flácidos.
Meu sangue pingava, empoçava no chão e secava com rapidez. Naquela poça endurecida, senti-me imobilizada.
Tentei correr, mas não consegui. Quanto mais o rosto porcelanado se virava para mim, mais craquelado ficava, mais rachava, quebrava. Até começar a cair:
 Pláááft... pláááft.... pláááf.  
Esfacelou-se completamente. Senti ânsia de vômito. Fiz força para não envergar. Segundos depois, foi como se tudo começasse a ficar mais fluido, diluído.
O sangue endurecido foi ficando gosmento até voltar ao seu estado líquido. Meu vômito começou a escorrer pelo quarto feito água pura, pura bile.
Saí dali.
O movimento na cozinha havia cessado, nenhuma peça de vidro ficara inteira. Nem meu jarro tão caro. Sentei-me à mesa e olhei desalentada para o chão. Nada a fazer.
Em sequência, peguei vassoura, pá, jornal, pano, balde, água. Voltei ao quarto, varri os restos de minha tia, limpei a nojeira. Fiz uma trouxa com os lençóis e escancarei as janelas para arejar.
Voltei à cozinha, juntei os estilhaços e joguei tudo fora. Nem uma só xícara permanecera intacta. Talvez isso significasse o fim.
Apressada, terminei a limpeza. Em meia hora teria que sair. Tomei um banho, limpei os cortes pelo corpo e me vesti. Virei as costas e fui embora.
Sentia-me aos cacos, o corpo tenso, os cortes ardendo, os movimentos duros, os ossos a estalar.
Fui andando pela calçada rumo à biblioteca. No caminho, procurei respirar profundamente para relaxar. Teria mais um dia cheio pela frente.




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