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quarta-feira, 20 de março de 2013

O acaso é passageiro


Sou um esbaforido crônico. Amarrotado, mal ajambrado, três envelopes pardos embolados
entre jornais dobrados debaixo do braço, corro pela rua. Nos dedos, um saco politicamente
incorreto de padaria com suco de mamão com laranja, sem açúcar, por favor, tomara que a
garçonete cara de entojo tenha fechado o copo direito. Na mesma mão, uma sacola de papelão.
Tênis, meião, short, camiseta amarfanhada. Fazendo do mindinho um gancho, enrosco um laço
delicado de um pacotinho mimoso estampado de rosas sobre um fundo lilás. Acordei tarde,
não posso perder a hora, o minuto, o instante.  Nesta condição infame e atabalhoada,
mergulho num taxi que, talvez por piedade, para ao meu aflito e troncho sinal: a mão que sobra,
segurando dois livros que leio simultaneamente, acena como um náufrago ao escaler.
E me jogo ao banco de trás do carro, agradecendo à inventiva humana pelo ar condicionado,
relegando a segundo plano a penicilina, o astrolábio, o caminho marítimo para as Índias, o inconsciente,
o quanta, os óculos, a camisinha, a vacina Sabin - agora peguei pesado - , o vinho, a combinação
mágica e inebriante das sete notas musicais, a fita crepe, a roda, o cortador de unha, a anestesia, sim,
nada criado pelo homem pode ser mais importante que a brisa gélida que me acolhe agora.
É o analgésico dos males do bafo de Lúcifer, vulgarmente chamado pelos otimistas que ostentam
corpos dourados de verão carioca. E suspiro. Digo para onde quero ir e me deparo com uma
voz suave e delicada. Mais pausa para respiração. Trata-se de uma motorista, mulher com todas
as letras e charmes, uma chauffeuse, como dizia minha avó, empinando as narinas, embicando os
lábios prenunciando o botox, espargindo perdigotos. Minha adrenalina se curva à circunstância.
Ajeito as tralhas cuidadosamente no banco e me estico ao lado oposto para contemplar Sonia, como
diz o crachá colado ao para brisa. Tudo se acalma. Gosto de mulheres me conduzindo. E que mulher
bonita. E que sorriso bonito. E que gestos bonitos ao passar a marcha e comandar o volante.
Tentamos um diálogo minimalista. O trânsito. O calor. A cidade. A selvageria dos ônibus.
O abuso dos motoqueiros. A fragilidade ousada dos ciclistas. A indolência dos guardas municipais.
Imagina na Copa. Não dá para contemplar a dona totalmente de frente, mas seu sorriso de perfil
e seus olhos no retrovisor me bastam. Acho que estou carente.  Acho, não: estou. O diagnóstico
é óbvio. Um amálgama de melancolia, autoestima no pé, chifres na cabeça. Mas do resíduo que sou,
faço o adubo da minha coragem. Tão pensando o quê? Vou jogar tudo pro alto, vou mudar
o destino da vida e deste taxi. Por favor, Sonia, vamos pela praia e dê uma paradinha para uma água
de coco. Quero conhecer essa mulher em pé, andando a esmo pelo calçadão de Ipanema, as pernas
que vislumbro intuem um caminhar gostoso, num doce balanço, o balanço do mar, que alguém
já decantou diante daquele mesmo céu, dessa gente feliz. Sou piegas, sou clichê, e daí? Ela merece.
Ela não é nenhuma garotote, nem carcomida pela vida. Travessa, esbanja veneno. Madura, focada, conversa de olho no carro da frente sorrindo para mim, eu sei que é para mim. Suas unhas são bem
feitas, suas mãos decididas. Não usa aliança, não tem retratinho de criança no painel. Mas,
o que importa? Neste exato momento na rua que não anda, ando eu com meus pensamentos incandescentes. E puxo assunto. Fecham os cruzamentos, gente mal educada e sem respeito. Tudo
está parado. Só a conversa acelera. Cidadania, trabalho, passageiros, saúde, solteirice, homens
canalhas, mulheres desfrutáveis, vida a dois, traição, Martinha me largou, sabia? Edvaldo aprontou
comigo também, aquele patife! Sexo sem compromisso, não precisa mandar flores, ah, eu gosto de
mandar flores, dia seguinte é tudo. Como pode? Num engarrafamento de hora e vinte e cinco com
uma chauffese encantadora pode tudo. Um sonho, um desejo, uma viagem de estourar o taxímetro.
Pena que chegamos.
Aqui está, Sonia, pode ficar com o troco, digo eu. Divertido, gentil, muito gente boa, diz ela.
Foi um prazer, abro um sorriso, olhos nos olhos. Aqui está o cartão da cooperativa, me entrega,
devolvendo a flechada com o olhar. Quando precisar, é só ligar. E se não precisar? Arrisco
timidamente. Ah... liga assim mesmo, responde dengosa. Bingo. Não saio do carro. Espreguiço
em direção à calçada. Ainda dá tempo para um cretino e derradeiro provérbio que invento na hora, atribuído a um sábio qualquer do Nepal: que os deuses do acaso lhe aprontem surpresas felizes.
Ela sorri, piscando os olhos lentamente. Acertei fundo, penso eu. Ela não dá partida no taxi.
Acertei fundo, tenho certeza. Ela acompanha meu caminhar atolado de tralhas até o entra e
sai do edifício majestoso de vidro fumée e entrada de aço escovado. Não entro. Vigio a sua saída, demorada, involuntária. O trânsito buzina insensível, impaciente, invejoso. Trocamos palavras mudas
de rabo de olho. E segue a vida.
Subo as escadas como um Fred Astaire, canto como a Noviça Rebelde. Em três andares repasso
a minha existência. Lépido, zombo das desditas. Tantas e tantas nesses 46 anos de carne, osso e
algum espírito. Morro de rir da desgraça mais fresca: Martinha me trocando pelo psicanalista do gato,
de nome Escaldado, bicho esquisito temente à própria sombra, sempre apavorado com Dr. Raphael
De Pomposo Sobre Nome De Encher a Boca Neto, acho que com razão e perspicácia, já que
o doutor em behaviorismo de felinos e outros pets acabou por roubar minha mulher. Diabo de gato visionário. Sempre me olhou como se eu fosse um idiota, o adjetivo que mais ouvi de Martinha,
entre os tantos que ela me desfiou com sua voz anasalada salpicados de palavras da língua inglesa, para justificar com seu estilo sua saída de banda: seu tijucano mal ajambrado, seu troncho, seu gauche, seu asshole, seu good for nothing, seu metido a intelectual de boteco, seu chicken, seu traste, seu fucker
looser, seu isso, seu aquilo. Ouvi tudo calado, chorei baixinho e agora acho a maior graça.
Ah, Martinha, você é uma dondoca vagabunda. Vagabunda, dondoca, besta e burra. Muito da burra.
Tem gente com alma de gente, jeito de gente, sorriso de gente, que acha que eu sou gente. Sou gentil, divertido e gente boa, não foi isso que a Sonia disse? Ah, Martinha, a vida é um moinho -
de novo o clichê, a ausência de originalidade, a pieguice rasteira. Dane-se. Agora é cada um na sua.
Você com seu Freud de bichano cuidando da sua patricice e eu com minha taxista tesuda, charmosa, simples, guerreira, me levando aos píncaros dos paraísos. E com essas palavras no coração
e cara de freira possuída, chego secretamente feliz ao meu destino.
A sala está cheia. A recepcionista vem ao meu encontro, apontando para o relógio. Em cima da hora,
diz ela. Peguei um belo trânsito, digo eu. E que trânsito, que trânsito, que trânsito, repito, repito, repito sorridente, sentando na cadeira em frente à escrivaninha. Começa o confere. Trouxe roupa apropriada
para o teste ergométrico? Claro. Os resultados das radiografias anteriores? Tudo aqui. Jejum de
12 horas? Sim, sim. Ela baixa o tom de voz: ejaculação nas últimas 48 horas? Nem por conta própria,
minha filha. Ela ruboriza, se apruma e vai: medicamentos frequentes? Poucos: controle de pressão, colesterol, gastrite, vitaminas C e E. Coleta para o exame parasitário? Como? Arregalo os óculos. Ela, discreta, cochicha professoral ao meu ouvido: as-fe-zes-no-po-ti-nho. Pronto. Todas as tralhas desabam
no chão da ante sala do laboratório. Sinto que as pessoas param de ler Caras, Capricho, futucar celular, tablets, essas coisas.  Respiro fundo, tranco os olhos e vejo o pacotinho mimoso estampado de rosas
sobre lilás, tão disfarçadamente embrulhado, solitário e delicado, repousando prosaico no banco
traseiro do taxi de Sonia.
Virei estátua. Martinha é sábia. Escaldado, o gato visionário. Só me restam um silêncio infinito
e um olhar profundo para o nada.  Minha mão sai do controle. Mato mil moscas na minha testa,
pulo súbito sobre a escrivaninha. Quero fazer harakiri com uma caneta Bic.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


7 comentários:

E eu que estava a invejar a disponibilidade para aprofundar um encontro prometedor, quando você me atingiu com a ironia cruel com que, às vezes, a vida se compraz... Shit!

Delícia de texto! Rindo muito, aqui! A descrição rica dos pensamentos do protagonista, a facilidade em reproduzir diálogos sem fazer uso dos hífens (invejinha, invejinha...) e esse final hilariante. Não tem Sonia que resista ao conteúdo da sacolinha florida! Adorei!

olha,Gui, eu adorei! simplesmente delicioso este seu texto e não lembra ao diabo o desfecho
(isso, e ser encornado pelo psicanalista do gato...)

Obrigado, Joaquim, Cinthia e Maria de Fátima.
Delícia é escrever para a Samizdat e divertir as pessoas. Só isso.

Vim, sob sugestão da Cinthia Kriemler. Adorei.

Quando o cansaço de ler um frenesim astronómico, dá lugar ao prazer de o ter lido assim de uma só vez, foi porque a viagem valeu a pena... Ler, escrever, é fácil, dificil é captar o sonho,e isso foi conseguido. Até o final deixa o sonho em aberto...
Obrigado, por estes 15 minutos de boa leitura...Réjo Marpa.

Como é bom um texto que nos fisga logo na primeira frase!! Que delícia atravessar um texto "preso" ao anzol de palavras tão deliciosas!! Já sou peixe cativo dos próximos textos. É só jogar o anzol.
Abraços,
Tarlei

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