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quinta-feira, 21 de março de 2013

O Melhor Amigo do Homem


Chegou em casa puxando o cachorro pela ponta de um barbante improvisado como coleira. Janete tão logo pôs os olhos no bicho, resmungou:
— Apartamento não é lugar prá cachorro! Já tenho trabalho por demais, homem! Vou lá ser aia de um cão?
Adalberto clamou pela compaixão da esposa. Encontrara o animal perdido e, em um ato de piedade, o levara para casa. Que mal havia nisto? Seria uma companhia para os dois, um casal sem filhos, beirando a meia-idade. Como a esposa mantinha-se resoluta, apelou para os santos
— Por São Francisco, mulher!
Neste ínterim o cachorro, que se mostrara impassível durante a discussão, escapou da coleira de barbante improvisada e correu em direção a Janete de jeito festivo, abanando o rabinho cotó. Amolecida pelos carinhos do animal, a esposa foi aos poucos cedendo. Que ficasse o pulguento. Adalberto poderia dispensar a ajuda do santo protetor dos animais. O cão vencera.
 Sentados no sofá, acariciando o pelo do cachorro que se deitara entre os dois, Adalberto e a mulher começaram a debater como chamariam o animal. Depois de abortarem algumas nomes, Janete cismou por Ralf. Adalberto preferia Rex, todo cachorro se chamava Rex, não convinha inventar mas, diante da insistência da esposa e temeroso de que a contenda em torno do nome a fizesse mudar de ideia em relação a permanência do bicho, Adalberto capitulou. Daria um tiro na cara de Janete caso descobrisse que o nome escolhido remetia a recordações luxuriosas entre a esposa e seu primeiro amante, um Padre alemão (ou austríaco, Janete nunca soube ao certo) com quem ela descobrira as ciências do amor dentro casa paroquial. O casal se amava após sermões do Padre, hipocritamente pregados no púlpito, carregados de ameaças àqueles que, mesmo em pensamento, pecassem sensualmente. Colegial inocente na época, Janete caiu de paixão pelo religioso. Sofreu o diabo quando Padre Ralf foi enviado para a África. Por anos a fio, Janete imaginou que ele havia sido devorado por supostos canibais. À noite, o seu sono era assaltado por pesadelos. Acordava suarenta, mente agitada pelas visões de partes do corpo do Padre Ralf, tão conhecidas, tão intimamente percorridas por ela, dilaceradas por bocas antropófagas. Sim, o padre merecia a singela homenagem.
E o cãozinho conquistou o casal. Era gratificante para ambos ter alguém, ainda que irracional, como objeto de um amor quase filial. Banhos, tosas, roupinhas de cachorro, passeios pelo condomínio onde moravam. O único motivo de discussão entre eles passou ser o prosaico privilégio que um acusava o outro pelo zelo extremado a Ralf.  O cão agradecia a atenção recebida com chamegos.
Durante um dos incontáveis passeios com Ralf pelo condomínio, Janete conheceu Rogério, um viúvo, aposentado, tipo atlético apesar dos sessenta, também morador do conjunto residencial. Ele afagou Ralf que, de rabo abanando, simpatizou com o viúvo. Cumprimentaram-se mecanicamente. “Belo animal”, disse ele. “Obrigada”, retribuiu. E cada um tomou sua direção. Depois deste episódio, sempre que Janete passeava com Ralf, Rogério cruzava seu caminho como por encanto. Os monossílabos trocados no primeiro encontro metamorfosearam-se em diálogos gentis e da simpatia nasceu a atração. Em pouco tempo Janete e Rogério tornaram-se amantes. Sob a cumplicidade do cachorro, os dois se encontravam fora dos limites do condomínio. Janete embarcava no carro do aposentado e Ralf ia no banco traseiro. Nunca se soube que motéis aceitassem cachorros, tal fato seria uma aberração, um verdadeiro culto à bestialidade. Permaneceu assim o mistério do local para onde aqueles três personagens se dirigiam.
Adalberto começou a estranhar a maneira como a esposa passou a tratá-lo. Tornara-se distante, fria, dispersiva. E aquele sorriso permanente? Qual o motivo da alegria? A felicidade de Janete o incomodava. Fofoqueiras da comunidade fizeram chegar aos seus ouvidos insinuações maldosas em relação à fidelidade da uma certa esposa cujo cachorro passeava demais. Mesmo sem provas, tornou-se ríspido com a mulher. Só a possibilidade de traição o desnorteava. Ela, mais preocupada com sua nova paixão, sorria o seu sorriso de adúltera por todo o condomínio enquanto desfilava por entre os blocos de apartamentos escoltada por Ralf .
Um dia, ao chegar do trabalho já corroído pela desconfiança, Adalberto decretou.
— De agora em diante quem leva o Ralf para passear sou eu!
— Vai me prender em casa?
— Só estou dizendo que vou levar o cachorro pra passear. Não posso?
— Claro que pode, se esta é a sua verdadeira intenção....
 O pobre Adalberto segurou de forma abrutalhada o rosto da mulher.
— Se for verdade que você me trai sua ordinária, eu não respondo por mim...
— Pergunte ao Ralf! – zombou a mulher, livrando seu rosto daquela mão suada.
Disposto a não cometer um desatino, Adalberto tomou a coleira e chamou Ralf para passear. O cachorro prontamente o atendeu. E saíram os dois, com estados de espírito opostos. O dono, exalando ódio e dúvida, o cão, felicidade estampada no abanar da cauda. Deram uma volta pelo condomínio e Ralf  arrastou o seu dono para o estacionamento. Em meio aos inúmeros carros, Adalberto descobriu o de Rogério. O veículo estava com as portas escancaradas. Dentro, o aposentado, espanador, nas mãos, tratava da limpeza do estofamento. O viúvo desviou o olhar para não encarar Adalberto. Era o amante, todavia mantinha seus pudores. Não era daqueles de desafiar maridos traídos e exibir suas conquistas. Rogério poderia se dizer, tentava ser discreto como um mordomo, daqueles que, diante de seus patrões parece desaparecer, aglutinando-se a mobília de uma casa.
Acontece que Ralf, ao reconhecer Rogério, rompeu com força a coleira da guia e, saltitante, correu em direção ao carro do aposentado, entrando e se aconchegando no banco traseiro.
Aquele gesto do cão fez com que Adalberto fosse como que atingido por uma bala. Explodia diante de si a prova da infidelidade de Janete. Até o cachorro, que ele tanto prezava, o enganara. “Corno da esposa, corno do seu próprio cão”, ruminou. Rogério empalideceu. Tentou se explicar, mas viu que as palavras morriam em sua boca. Inesperadamente, Adalberto girou calcanhares e, bufando, dirigiu-se para o bloco onde morava. Abriu a porta de com violência. Janete estava na cozinha preparando o jantar. Diante de um marido rubro pelo ódio e coleira na mão, ela escancarou os dentes numa risada indecorosa. Adalberto saltou para cima de Janete e, sem ligar para os seus protestos e resistências, amarrou a parte que restara da guia e da coleira no pescoço da esposa e a arrastou para a pracinha central do condomínio. Juntou gente para ver a humilhação. Meia dúzia protestava, outros apoiavam o modo como o marido punia a mulher adúltera. Crianças riam e pulavam divertidas, sem ter a real compreensão do dantesco espetáculo.
— Cachorra! Vagabunda! Vem dar uma voltinha, cadela no cio! – vociferava Adalberto, exibindo a traidora pela coleira que na, tentativa de resistir, teve o corpo arranhado pelo contato com o a aspereza do calçamento.
Em meio ao tumulto, Rogério fugira no automóvel levando Ralf com ele. Deste modo, o viúvo não presenciou o final mexicano dos acontecimentos. Achincalhada perante os vizinhos, humilhada diante de uma comunidade, Janete vingou-se com a originalidade que só algumas mulheres são capazes de fazer. Aproveitou-se de uma mínima distração de Adalberto e conseguiu enrolar a guia da coleira em torno do pescoço do marido. Apertou com todas as suas forças, asfixiando-o. Os vizinhos ainda tentaram socorrê-lo, mas a fúria de Janete impediu que eles conseguissem afrouxar o laço. Morreu ali mesmo, na praça, olhos saltando das órbitas, boca espumando, ante o horror dos moradores. Janete está presa. Agora é famosa. Um programa sensacionalista de televisão a batizara como “O Monstro da Penha Circular”. Rogério reapareceu meses depois e, portando sua costumeira discrição de mordomo, providenciou a mudança. De Ralf, não há notícias.

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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
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