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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Sobre deus e maçãs

Vejo deus com certa frequência. Há alguns anos reparei que ele gosta de chegar pela manhã, ali entre nove e meia e dez e quinze, nos dias de sol. Não é dado a cerimônias, como as bocas ortodoxas insistem em sustentar. Estou convencida de que fazem dele um péssimo juízo e isso, no final das contas, atrapalha a todos nós, que temos obsessão por referências estáveis. Seria melhor, mais eficiente e decente se rezássemos diante de pilares de concreto, se o que nos interessa são crenças vagas e arremedos de espiritualidade. A questão da ilusão, aliás, é um tema recorrente em nossas conversas. Refaço sempre a pergunta sobre fé: o que tu ganhas com isso? Ele usa uma mesma reação, olha para a janela, sorri, então me olha de novo e convida a dividir uma maçã. Não gosto de maçãs, mas procuro tê-las em casa por dois motivos: por ele e pela minha úlcera. Costumo brincar que o estímulo divino mantém minha saúde gástrica: vai tudo bem, graças a deus! Não fosse pela lembrança dele, meu estômago murcharia tanto quanto a fruta esquecida na geladeira. Sim, ele prefere suas maçãs geladas.

Acho até charmoso deus assim, sentado no chão, as costas escoradas no sofá, uma faca a retirar a casca, partir a polpa ao meio e aparar as sementes antes de levar à boca nacos miúdos de maçã. O cara não tem pressa. Fica horas ali, comendo e falando e me ouvindo. Muitas vezes a fruta escurece na mão dele enquanto aguarda que eu fale alguma coisa útil. Coitado. Mas o homem vem porque quer. Nunca convidei. Percebi que quando chove ou venta, ou quando chove e venta, ele não aparece. Coincidência ou não, nesses dias é quando me vejo mais agoniada. Já falamos sobre isso também. De agonias. Não imaginava que deus tivesse palpitações, que sentisse a garganta fechando, que sua cabeça latejasse de preocupação ou ansiedade, que tivesse herpes ou aftas de aflição. Segundo ele, acontece seguidamente. São mazelas humanas, fiz gracinha. Não retrucou. Sacudiu a cabeça, apenas, e manteve-se em silêncio.

Da última vez que veio, coloquei meu cd do Gil naquela música “Se eu quiser falar com Deus”, certa de que estava surpreendendo. Pelo visto não agradei. A expressão do rosto de deus mudou de um jeito. A pele da testa fez três vincos na horizontal e tudo nele de repente ficou meio transparente. Disse que era a minha vez de ouvir. Tudo bem, consenti, e fui me acomodando ao lado dele no chão da sala. Grave, curto e grosso, confessou não ser quem eu pensava: de deus não tenho nada, querida. Estatelei, perdi a reação, as pontas dos meus dedos roxos de susto. Eu estava encostada em deus, perna com perna, como assim, não era ele? Não sou. Venho e permaneço até que te distraias e não lembres mais de te ferir com a faca das maçãs. Se nosso papo é bom, te fortaleces o suficiente até os próximos dias ensolarados e estás a salvo de ti. Deus de verdade tem um poder sem fim. Eu nem sei evitar temporais. Dependo do tempo aberto para cruzar a tua janela. Entendi tudo. Desde então chuvisca todas as manhãs até perto do meio-dia.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


8 comentários:

Maravilhoso. Forte, reflexivo na medida exata. Subliminarmente dramático.

Gosto muito desse, Andreia! Obrigado por estar aqui!

Lindo Déia, de onde vem tanta inspiração.

Gostei muito. Intenso. Evitou o que podia ser um final fácil e manteve excelente nível, até mesmo no desfecho de deus falando de Deus. Mas quando parar a garoa virá?

Maravilha de texto. Parabens, Abdreia.

menina! que texto sublime sobretudo porque consegue o que em escrita é divino (digo eu...) dizer o que nem está lá escrito, mas se ouve opor detrás do texto
explêndido!
o que tenho perdido!
bem haja!

Que não nos percamos mais, Maria de Fátima. Nunca mais! :D

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