Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Crônicas de jornaleiro II

Vocês podem não acreditar mas se aprende muita coisa entregando jornais. Eu aprendi. A primeira coisa foi a sorrir. Ou teria sido dizer bom dia? Não lembro. Talvez, as tenham acontecido juntas porque era uma obrigação sorrir e dizer Good Morning (Bom dia). Estampar aquele sorriso no rosto independente se você estiver triste ou feliz; se alguém tivesse morrido ou nascido; se fizesse sol ou se chovesse. E chove quase sempre em Dublin.

-Good Morning, How are you?
- ‘Bom dia !!’ - respondeu-me Paul e logo perguntou, ‘Como você consegue estar sempre de bom humor. Faça chuva ou faça sol, você esta sempre rindo’.

Eu nunca soube o que responder nesses comentários. Eu apenas dizia obrigado. Mesmo se fosse em português eu não saberia o que dizer. Apenas ficava feliz em ouvir isso. É engraçado eu ‘estar sempre rindo’. Pelo que lembro, de quando trabalhava no escritório em São Paulo, eu tinha uma dificuldade para ser simpático, para sorrir. E hoje recebo elogios por isso, em um trabalho no qual ganho muito menos e pego chuva e frio. Acho é mesmo estranho, esse negócio de gente, esse negócio de ser feliz.

Aprendi outras coisas por aqui. Aprendi a ter horário fixo, acordar cedo. Aprendi que não gosto nem de acordar cedo e nem de ter horário fixo. Mas eu gostava do jornal. Na verdade, o que eu gostava mesmo eram das pessoas porque eu também aprendia com elas.

Logo no início, aprendi que o tempo passa. Percebi olhando para elas, para as pessoas. Percebia que o tempo passava, elas não. Eu dizia para mim, o tempo andava sem que as pessoas percebessem porque elas estavam muito preocupadas em andar e não em parar. E eu percebia porque as olhava de fora e porque parava bastante para elas.

Percebi quando a Lisa, uma grávida maravilhosa, começou a caminhar vagarosamente. Ela nunca pegava o jornal, mas sempre me cumprimentava com um bom dia com vivacidade. E tempos depois quando recebei um prêmio no jornal, ela parou e disse que eu merecia mesmo ter ganho o prêmio.

Certa vez percebi que aqueles eram os últimos dias da Lisa, em pouco tempo eu não a veria mais nas minhas manhãs. Então um dia aconteceu. A Lisa não apareceu. No terceiro dia que senti a sua falta chovia, chovia bastante. E naquela manhã, na chuva eu ria de felicidade. As pessoas deveriam se peguntar porque eu ria tanto, mas a minha felicidade era porque havia percebido porquê a Lisa não estava vindo. O bebê dela tinha nascido.

Que alegria aquela manhã. E tive muitas outras manhãs alegres no trabalho. Mas houve dias em que a felicidade não estava presente.

Uma manhã, fui trabalhar ansiosamente porque o meu afilhado iria nascer. Ele ia nascer longe, lá no Brasil. Na verdade era o padrinho que estava longe, mas mesmo assim estava ansioso. Eu não deveria usar o celular para fins pessoais, mas naquela manhã eu não respeitei a regra. Fiquei com o celular em alerta para receber qualquer notícia. Queria estar ‘presente’ ao nascimento porque eu estava contente, radiante.

Eu começara a trabalhar às 7h. Por das 8:30, recebi uma mensagem. Era no horário do mais fluxo de pessoas, mas eu não podia esperar. Pedi desculpas para algumas pessoas e olhei a mensagem. Parei. E então eu percebi que as vezes o tempo para também, para olhar para gente, para entender o que esta acontecendo. Eu parei por um segundo, mas para mim foi uma eternidade. O meu chão parou, as pessoas em minha volta esperando o jornal e eu não sabia o que fazer, então um deles, dos clientes, percebeu que algo estava acontecendo e puxou o jornal da minha mão. Voltei em cena, mas foi um dos únicos dias em que eu não consegui fingir o sorriso. Eu estava frio, congelado.

Eu só conseguia lembrar da mensagem que dizia ‘o bebe nasceu morto’. Ninguém esperava por aquilo. Eu não esperava por aquilo. Meu chão estava em outro lugar, não eu não tinha mais chão. Aquele foi um dos dias mais tristes para mim. Queria poder rir como quando o filho da Lisa nasceu, mas eu fiquei sem reação quando descobri que a vida que tanto esperávamos estava morta.

Eu tentava imaginar como estaria a minha amiga. Tentava imaginar a dor de você ver nascer; de sentir a vida dentro de você por meses e perceber que foi um sonho, que aquela vida não existe mais. Naquele dia que percebi que o maior risco da vida não é você morrer. O maior risco da vida é não viver.

Eu não podia fazer muito daquela hora. Só podia fazer o que tinha que fazer. Fingir um sorriso, dizer bom dia e continuar o trabalho. 

Share




0 comentários:

Postar um comentário