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domingo, 14 de fevereiro de 2010

Festa no céu

Polyana de Almeida


Seu Jacinto veio me chamar no meio da noite. Rugiu, gritou, mandou meu nome e disse: já está na hora.


Esfreguei os olhos, alisei meu bendito queixo, e deixei as pálpebras caírem soltas num piscar de sonho. Mas a nitidez das coisas, as cores, o tato, o tom pálido dos espaços me desmentia – já não durmo, já não sonho. E vivo?


—Com que roupa eu vou?

Sem resposta, ele me guiou até a porta.

—Espera mais um ano?

Assinalando um Não com cabeça, ele me puxou pelo braço. Toquei as mãos velhas do preto, senti a casca rugosa da palma, lixa. Apertei sua mão. Tem pulso firme, o velho, pensei. A mão áspera de anos, mas a firmeza da lida. Com suas mãos, eu antevia sua história. A cabeça toda branca. O rosto talhado, sulcos dos anos e do bacalhau. Deve passar dos setenta, talvez. Deve conter as histórias do mundo no desenho pesado das mãos e nas costas. E anda, pensei, como pode andar?

—Pra dentro, sinhô-moço. Vai chover. Logo mais há de começar.


—Você vai se quiser, seu Jacinto. Prazer em conhecê-lo. Eu quero bandear um pouco pelos arredores. Depois trato de entrar. Ou eu me encarrego de sumir.

E voltou. Retornou para a escuridão de onde mal havia se apartado, como um desses mitos da noite, que na noite ficam. Tão logo, as gotas invadiram o espaço, num leve correr devasso. Eu levantei a cabeça e deixei que a água abraçasse minha face. Gotas escorrendo, uma atrás da outra, nas bochechas, na boca, nos olhos. Essa vila, essa vila tem feitiço, lancei. É coisa que não há. Andei certas distâncias, falei, contei o monte do passado, o cheiro da mata molhada, a lama debulhada sob os sapatos a roubar o cheiro do ar, o cheiro da vida. O barulho encharcado dos espaços, cada passo entrando no chão, como se a terra me tragasse em minha chegada. Tão cedo. Para não mais sair, para nunca mais sair. O cheiro forte da natureza, plena e esvaziada, agredia a insipidez das narinas acostumadas com os excessos do corpo, combate deflagrado. A náusea do novo; ficará aqui se nós o tomarmos como nosso. Cedo demais.

Do escuro, uma porta me aguardava. Girei a maçaneta, e adentrei o espaço. Um vasto salão caiado em branco, tinta desgastada, abrigava o vazio desolador dos fins de festa. Garrafas ao chão, serpentina jogada aos cantos, um brilho espalhado, dissipado no ar, cadeiras postadas junto à parede, ou em roda. Ao longe, podia ouvir o ruído sussurrado de uma vitrola antiga. O som ia, aos poucos, tomando os meus ouvidos, me abraçando, chamando meu ritmo. Quis tamborilar na palma das mãos o batuque dos dedos, o batuque privilégio, a umbigada de meus vinte e seis anos, cantarolando murmúrios dos tempos que não voltam mais.

— Se ainda pudesse... Um último desejo...

Como num piscar, a porta abriu-se novamente. Uma multidão avançou, preencheu o salão, em um barulho contínuo. Uma preta, senhora de roupas grandiosas, e colares variados, aproximou-se e segurou minhas mãos. Eu a beijei, em reverência, reconhecendo-a.

—Estamos esperando. Vem logo escutar o samba que fizemos para te dar. Da tua voz tirei a melodia e a harmonia eu fiz com teu olhar.

—Tia Ciata, um último desejo.

—Noel, pode mandar, sinhô-moço.

—O meu destino foi traçado. Mas eu me vou é muito cedo, eternamente hei de sorrir pra não chorar. Uma jura que fiz: eu nasci pra batucar.

—As cordas vão dizendo que o samba é só teu. E no céu há festa, Noel. Estamos esperando...


Tamborilei um pouco, juntei-me à multidão e cantei: Eu vou pra outra Vila, onde o samba também é sina...



(Homenagem ao centenário do nascimento de Noel Rosa, prodígio do samba, que morreu aos 26 anos, em 1937. Os trechos a seguir são de excertos ou títulos de suas composições: “Festa no céu”; “Seu Jacinto”; “já não durmo, já não sonho”; “Com que roupa eu vou?”; “Espera mais um ano?”; “Você vai se quiser”; “Prazer em conhecê-lo”; “Essa vila, essa vila tem feitiço”; “Ou eu me encarrego de sumir”; “o batuque é privilégio”; “Um último desejo”; “Estamos esperando. Vem logo escutar. O samba que fizemos para te dar.”; “Da tua voz tirei a melodia e a harmonia eu fiz com teu olhar”; “O meu destino foi traçado”; “(...) eternamente hei de sorrir pra não chorar.” “Uma jura que fiz”; “eu nasci pra batucar.”; “As cordas vão dizendo que o samba é só teu”; “Estamos esperando”; “Eu vou pra Vila”.)

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