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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

biscoitos de manteiga


   Maria de Fátima

   Um ventinho a soprar de fora fez restolhar o cortinado que protegia a entrada da varanda: um tecido leve, branco, vaporoso e muito limpo. Isaura disse, levantando o olhar na direcção onde Iria estava sentada mais perto da janela:
   – Está fazendo fresco. A amiga, se não se importa, feche essa janela.
  E Iria debruçou o corpo, ergueu-se apenas o necessário para prender um no outro os batentes de vidro, mas foi reparando no que ía na rua, ali à altura de um primeiro andar baixo:  
   – Parecem foliões. Devem ir para a sociedade, que hoje é sábado-gordo.
   Disse assim para que a outra soubesse o que ela estava vendo, e voltou a refastelar-se no cadeirão a esborrachar as florinhas miúdas pinceladas no tecido a par com umas aves que talvez fossem pintassilgos.
   – Os carnavais já não são o que eram – disse Isaura Torpes, revirando os olhos como se tivesse dito, assim dizendo, uma verdade enorme.
   E talvez fosse. Ao menos assim parecia entender Iria, a olhar a outra e a deixar descair o lábio inferior, a remoer duas ideias, a preparar a boca babosa para a frase que disse:
   – Eu também concordo…
   E a seguir foi o silêncio que era cada uma das senhoras a vasculhar memórias onde se reencontrasse vestida de pajem ou de dama da corte ou bailasse num baile.
   Entrou na sala uma moça a empurrar um carrinho desses de distribuir refeições, e disse, com um sorriso de quem está quase a sair de serviço, mas continua a cumprir obrigações:
   – Minhas meninas, o lanchinho.
   E foi colocando um bule e duas chávenas sobre uma mesa que parecia estar à espera de servir para alguma coisa, e retirou o pano que tapava um prato a deixar ver uma fiada de biscoitos. Cheirou na sala à manteiga de que os bolinhos seriam feitos, no mesmo instante em que uma madeixa do cabelo que a rapariga tinha preso numa touca, descaiu, e quase roçou a superfície do líquido escaldante que caía na chávena de Isaura.
   Terá sido disso que Iria se apercebeu dos confetis quase a soltarem-se sobre os guardanapos, quase a caírem numa orgia colorida sobre a mesa e sobre cada chá. Uns papelinhos vindos, sabe Deus de que baile da noite passada onde a empregada tivesse andado apertada nos braços de um arlequim ou de um soldado. Ou nem a moça teria brincado, talvez que nem se tivesse mascarado, e lhe tivessem atirado o confeti quando passava numa rua. Num e outro caso, esquecida de que ao outro dia, por volta das quatro e um quarto, serviria chá àquelas senhoras.
   – Isaura, a menina viu o cabelo dela?!
   Assim clamou Iria quando a empregada se afastou saracoteando umas nalgas largas sob a bata em quadradinhos azuis.
   Mas a outra sorriu-lhe, ou ao menos era um sorriso o que tinha colado no rosto magro já muito plissado em torno dos olhos e nos cantos dos lábios.
   Isaura nem deve ter-se apercebido do perigo que seria caírem na sua chávena papelinhos azuis, verdes e amarelos, além dos encarnados que decerto viriam de mistura. Que Isaura apenas tinha olhos para o que aqueles papelinhos lhe tinham avivado de memórias: episódios de Entrudos da sua juventude e outros, mais atrasados que sua mãe contara. E foi recontando sem pedir licença e sem retirar do rosto aquele riso miudinho, bem disposto.
   – Ai o que a mim me lembrou a ver os papelinhos …
   A minha avó chamava-se Maria da Assunção, mas todos a conheciam por Marquinhas. Naquele Entrudo, como de costume, em cada sala de baile estava armado o mastro com fitas e balões, e havia uma mão cheia de saquinhos de pano cheiinhos de areia ou serradura, conforme. E havia rolos de fitas multicores – as serpentinas – e saquinhos repletos de confetis. Os sacos de pano eram feitos expressamente – nos meses de frio, ao serão, mal passavam os reis, e já em cada casa havia ao menos um par de mãos a recortar tecidos velhos, a pespontá-los e a colocar-lhe um atilho no local por onde seria, nas vésperas de se iniciarem os festejos, colocado o material que, enchendo-os, e depois de atados, os iriam tornar em arma de brinquedo e arremesso. Os saquinhos prenhes de serradura ou areia da praia jogados a um e outro no cortejo ou atirados da janela ao incauto que passava na rua.
   – Costumes. – disse Isaura a ver se a outra dormitava ou se mantinha atenta ao que estava contando.
   Nesse Entrudo, minha avó juntou as quatro filhas, minha mãe entre elas, e vestiu-as com saias embebidas em muita goma e com muita roda; colocou na cabeça de cada uma um lenço de ramagens e, no braço, a uma pediu que levasse um cesto, a outra que segurasse uma galinha, à minha tia mais novita pendurou no braço uma bilha de trazer azeite, e à minha mãe, a avó Marquinhas disse que levasse um bácoro aconchegado no avental – um porco ainda mal desmamado que minha mãe segurou com desvelado cuidado.
   Minha avó materna, vestiu-se parecida com as filhas, mas colocou arrecadas nas orelhas, herança da mãe dela, e um xaile sedoso, negro e com cadilhos a descaírem na camisa branca. Na cabeça colocou um lenço todo ele em seda pura, ou imitando:
   – Sei lá eu… – e Isaura riu-se, ainda mais, a acrescentar, para compor o quadro que ouvira repetido à avó e à mãe:
   – Um lenço vermelho sobre as tranças que a minha avó tinha muito pretas.
   E prosseguiu contando.
  
   Pela hora em que o povo, e o resto da sociedade, começava a dirigir-se à sala de baile a que, por profissão e escalonamento social, lhe cabia em uso, minha avó Marquinhas deu a cada filha uma mascarilha que ela mesmo tinha feito em flanela preta com dois buracos para que assomassem os olhos. Em si mesma colocou, preso por fitas de cetim, no mesmo tom, uma rede negra, de tal modo colocada que se lhe ficavam a ver-se apenas os dois olhos. Nas mãos enluvadas de vermelho, Marquinhas segurava um baralho.
   – Seriam onze horas e o baile na sociedade dos ricos ía animado. – Isaura afirmou assim como se lá tivesse estado e prosseguiu o conto sob o olhar atento de Iria.
  
   Minha mãe contava que havia muita gente pelas escadas e que se apartaram a fazerem filas enquanto elas subiam, e que gritaram: deixem entrar as ciganas, que seriam elas com minha avó adiante e o bácoro grunhindo preso nos bracinhos de minha mãe ainda quase criança.
   Contavam, uma e outra, e houve tempo que contavam as duas, ao despique, que no salão parou o baile, arredaram-se cadeiras e as senhoras olharam-se a perguntarem o que seria aquilo, e riam a verem a minha avó andando de um lado para o outro na roda que se fizera no salão mais chique da cidade.
   Marquinhas e as suas quatro filhas ensaiando o que nem tinham ensaiado.
   Minha mãe diz que teve medo daqueles risos todos a olharem para ela muito aflita a segurar o porco para que não fugisse.
   Minha avó Marquinhas sentou-se com a saia em balão espalhada no sobrado e, espetando o dedo, chamou cada uma das filhas segundo a sua função:
                       tu que tens o galo, senta- te minha filha
                       tu que tens o bacorinho, aninha-te neste chão real
   – Minha mãe jura que a minha avó disse assim quando se referiu ao lugar onde ela se devia sentar.
    Isaura parou um pouco a beber um gole de chá.
   E minha avó chamou a filha que trazia a bilha e a outra que levava a galinha e sentou em sua volta as quatro meninas.
   Minha mãe contava do medo que tinha tido das caras dos senhores, rindo a mostrarem dentes de oiro e a olharem para ela lá do alto da roda que haviam feito em redor do espaço que elas ocuparam.
   E a minha avó leu sinas e deu sentenças, coisas que ela dizia ver nas cartas, ou seriam umas que inventava e outras que sabia de verdade serem casos de pessoas que estavam na sala ou eram aparentados.
   Todos riam: olha, olha o que diz a cigana, e a perguntarem entre dentes, sobretudo as senhoras: quem será que assim se atreve? e a desviarem-se, que sabiam que no Carnaval valia tudo.
   E foi quando se deu.
   Parece que minha mãe dormiu ou pelo menos descuidou o segurar no bácoro e este soltou-se, fugiu a grunhir por entre os pés dos foliões, senhores da classe mais alta da cidade.
   E minha avó Marquinhas, esquecida da função de ler as sinas, a levantar as saias e a correr pelo salão de baile a tentar apanhar o porco e a deixar as filhas e a galinha sentadas no salão.

    – Eram outros carnavais e não esta pouca-vergonha das mulheres sem roupa que vê na televisão e nos jornais.
    Assim atalhou Isaura, já Iria tremelicava o lábio desejosa de contar o que entretanto lhe lembrara:
– Houve um ano…
  

   É preciso dizer que Iria começava sempre deste modo cada conto que contasse.

   Houve um ano… disse ela, e foi seguindo:
   Houve um ano em que me mascarei de qualquer coisa. Entrouchada. Era assim que se dizia lá na terra quando não se assumia uma figura, mas era só a gente a entrapar-se, fosse lá como fosse, para sair à rua que era aí a festa: andar cada um de cara tapada nem que fosse com um pano de renda ou um trapo com dois buracos mal cortados, isso se não havia mascarinha, e não havia quase nunca. E lá íamos a mangar de uns e doutros. Mascarinha, diz-me o teu nome. E a gente a fazer voz disfarçada – voz de máscara – ríamos estouvadas como devem ser as mascarinhas a andar de sala em sala onde houvesse um baile.
   Ao outro dia, ou na mesma noite, como era divertido conversar com o moço a quem tivéssemos atazanado o juízo, sem que ele nos conhecesse, e ouvi-lo dizer: sabes quem é aquela mascarinha assim e assim? e ele a descrever a nossa triste figura quando disfarçadas, e a gente: não, não conheço
   Mentiras inocentes.

   – E sabe, Isaura, foi nesse Entrudo que comecei a namorar o meu Francisco, que Deus o tenha no Seu abençoado seio.

   E benzeram-se as mulheres a tasquinhar ainda um pedacinho de biscoito amanteigado.

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