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sábado, 13 de fevereiro de 2010

A primeira noite de Melissa

José Guilherme Vereza

Depois de algumas horas de sono profundo, sob a vigília curiosa de Thales, Melissa vira de bruços,
senta lentamente sobre os calcanhares, os cabelos longos e castanhos claros tapam seu rosto.
Começa a se espreguiçar como um cachorro vadio. Alonga os braços, estala os dedos finos, abre a fecha as mãos.
A lentidão dos movimentos é acompanhada por um Thales paciente, diferente do apressado que quer sempre deixar a cama vazia de gente
quando encerram as funções. Dessa vez, é pego de surpresa por uma vontade de fazer carinho.
Percorre os dedos pelas costas de Melissa caminhando pela coluna vertebral,
subindo suavemente ao pescoço e descendo até os inícios dos glúteos. Sem malícia, sem outras intenções,
a não ser retribuir uma noite de afeto.

- Que gostoso... fico toda arrepiada.
- É meu jeito de dizer bom dia.
- Eu também quero desejar bom dia pra você.

Melissa vira-se de costas para a cama, traz Thales pelos braços,
num golpe hábil de quem aprendera com o balé dominar o corpo a seu favor.
Ficam rosto com rosto, ele por cima, ela por baixo, enrascando as pernas longas numa armadilha
que Thales não sairia nem se quisesse.
Roçam pélvis com pélvis, apertam-se até não poder mais, beijam-se, sugam-se,
contrariando os que dizem que não se beija ninguém antes escovar os dentes. Danem-se as abluções.
Nem Thales nem Melissa querem perder o gosto da manhã de uma noite bem aproveitada.
E reiniciam o ritual de urros e suores, gostosuras e ferocidade, estranhos e inusitados.
Não estavam acostumados com isso. Ela jamais se entregara tanto. Ele, por fastio, jamais repetiu a dose com mulher alguma.
Não era dado a delicadezas. O contrato sempre cessava à última gota, quando Thales ainda melado pulava da cama
em busca da carteira para encerrar aquela lengalenga.
Dessa vez, algo de novo estava acontecendo entre os dois.

- Você é diferente. Por um momento você me fez esquecer que a gente não era o que a gente é.
- E o que a gente é?
- No principio, eu sou um cliente e você uma prestadora de serviços.
- E no fim?

Os rostos se encostam. Os olhos se fecham. Os lábios se falam.

- Duas pessoas querendo entender o que está se passando.
- Duas pessoas que por alguns instantes viveram a ilusão de um encontro químico, amoroso, carnal e...,
desculpe ir longe demais: a-pai-xo-nan-te.

Melissa se levanta de supetão. Thales fica paralisado diante da mulher estabanada que tentava recolher
as roupas espalhadas pelo apartamento. O vestido na varanda, as sandálias na sala, o sutiã na mesa de jantar e a calcinha
- sabe-se lá onde foi parar o diabo da calcinha no momento em que foi extirpada sob a fúria dos esfomeados.
Agora, enquanto recolhe o que vestia antes do baile, Melissa balbucia pensamentos em voz alta.

- Tia Aurita me avisou... esse trabalho não é para mim. Namorado é namorado, cliente é cliente...
Onde está a calcinha... não posso sair sem calcinha...
- Na cozinha, Melissa.
- E você para de me vigiar. Acabou o serviço!
- Não estou vigiando... estou apressando a sua saída.

Melissa fuzila Thales com testa franzida e pálpebras tremelicando.
Num silêncio furioso, amaldiçoa sua própria hesitação.
Seu instante de sinceridade e fraqueza estavam em vias de encerrar o sonho aventureiro
de uma carreira bem sucedida de mulher de tantos e tantos homens ricos, poderosos, maduros.
Achava que estava vacinada contra qualquer trapaça. Mas entregue a uma esfinge de homem,
logo o primeiro cliente, perdeu o juízo.
Sentiu um macho amoroso derramar afeto entre suas pernas e o que é pior:
deixou-se retribuir como uma donzela possuída por um príncipe.
Que pieguice mais ridícula. Como uma aprendiz da vida pode fraquejar ao primeiro serviço?
Que homem era aquele, que encostado à cabeceira, braços cruzados, tórax nu, sorria de canto de boca,
deixando escapar um olhar intermitente entre o inquisidor e o pidão,
próprio dos machos perversos e dos meninos meigos que as mulheres gostam de botar no colo?
Que homem era aquele que emanava uma superioridade meio besta,
ao mesmo tempo em que suplicava com os olhos que ela ficasse mais um pouco, um pouquinho só,
para que a eternidade cuidasse de resolver o imbróglio causado pelas surpresas do acaso?
Melissa respirou fundo.

- Me dá logo o dinheiro.
- Tá aqui o pagamento. Como combinado com a tia.
- Melhor assim. Contrato é contrato.
- Tá certa. Fomos longe demais. E veste logo essa calcinha.
- Quero ir embora logo, sem nada por baixo. Se achar a calcinha, fica de souvenir pra você.

Melissa bate a porta sem olhar para trás. Esbaforida, desce a ladeira saltitando entres os paralelepípedos,
tentando trazer junto o coração que cismava em ficar naquele apartamento bagunçado.
Foge sem querer fugir, enquanto um Thales atordoado encontra a calcinha embolada numa fronha.
Leva a lingerie rendada até o rosto, fecha os olhos, beija, morde, passa a língua,
esfrega no nariz, cheira profundamente o tecido, inalando uma sensação inédita e inebriante.
Tem ímpetos de pagar o celular:

- Volta, estou morrendo de saudade. Vamos passear de mãos dadas,
ir ao cinema, tomar sorvete.

No mesmo, absoluto e coincidente instante, numa sinergia rara e transcendental,
Melissa desacelera a fuga fingida e inicia uma meia volta.
Tem ímpetos de bater na porta de Thales.

- Voltei, estou morrendo de saudade. E quer saber? Meu nome é Ana Luiza.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20