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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A Última Estripulia

Maristela Scheuer Deves

Aquele tempo já vai longe, mas, quando penso, pareço ainda estar vendo a cena, como um filme muitas e muitas vezes repetido. Éramos três, nos nossos seis ou sete anos, idade em que alguns têm medo, mas a maioria inocente se acha imbatível e indesafiável. Claro, acreditávamos (em parte) nas histórias de fantasmas que os irmãos mais velhos contavam para tentar nos assustar, mas, desconfiados de suas intenções, preferíamos pensar que, se um dia nos deparássemos com algum ser do além, saberíamos como enfrentá-los com a nossa super-força de crianças travessas.
Pobres de nós. Pobre Carlos Alberto, pobre Carmem... pobre de mim, também, embora tenha conseguido (terei mesmo?) me safar com apenas algumas seqüelas... A ingenuidade, essa estranha força que geralmente protege os pequenos e os encoraja a seguir adiante e crescer, daquela feita foi macabramente fatal. Vendo agora, com olhos de adulto – e desde aquele dia sem nenhuma ingenuidade –, percebo porém que não teríamos como saber. Mesmo os mais velhos tinham medo de ali passar apenas de noite, e já fizéramos aquelas mesmas estripulias tantas e tantas vezes!
Foi num dia frio, junho ou julho, não lembro direito – embora recorde, e nunca vá esquecer, cada momento e cada fato desde que entramos no velho cemitério. Eu, com minha grossa japona de nylon marrom, recheada com um blusão de lã castanho, gorro de crochê na cabeça, meias grossas e botas de borracha amarelas que tinham sido do meu irmão. Carmem, com seu costumeiro casaco de lã azul claro e gorro multicolorido, que tantas vezes invejei pensando que se parecia com um arco-íris. Mesmo Carlos Alberto, que nunca parecia sentir frio, naquele dia cedera às baixas temperaturas (ou às recomendações de sua mãe) e se agasalhara.
Mesmo entrouxados como estávamos, ignoramos os pedidos de que brincássemos no quintal de minha casa. Depois de tantos dias chuvosos em que a rala diversão se restringira à televisão e às rodas de faz-de-conta, queríamos mais era aproveitar o sol e correr até onde pudéssemos. Só não fomos pular do telhado na casa da vizinha porque esta, que se arrepiava só de pensar em um de nós quebrando um braço ou perna, agora ficava vigilante e sequer nos deixava chegar perto do cinamomo que escalávamos para chegar nas telhas. Depois de esgotar as possibilidades das árvores próximas à minha própria casa, alguém – ou teriam sido todos, de uma só vez? – teve a idéia: ir caminhar sobre os muros do cemitério, atividade exploratória que costumávamos fazer pelo menos uma ou duas vezes por semana.
Fosse de quem fosse a sugestão, foi aceita por unanimidade, e corremos todos pelas quase desertas duas quadras de rua de chão batido que nos separavam do campo santo (santo?, me perguntei depois, e continuo até hoje sem resposta) do vilarejo em que morávamos. Se pelo menos soubéssemos que o improvisado playground do qual tanto gostávamos só não se tornaria nas próximas horas a nossa morada definitiva porque eu tive a proteção dos santos e porque Carmem e Carlos Alberto... bem, melhor seria que eu pudesse partilhar a vã esperança de alguns, de que um dia eles ainda venham a ser encontrados.
Mas, voltemos àquela tarde, por mais terríveis e dolorosas que me sejam as lembranças. Talvez seja melhor eu fazer de conta que estou relatando um dos filmes que naquela tenra idade gostava de assistir escondida (meus pais me proibiam pensando que eu fosse ter maus sonhos e acordar gritando durante a noite, o que nunca aconteceu), e que desde então nunca mais pude ver – pois depois da última estripulia do nosso trio, passei a ter pesadelos noite após noite sem precisar do incentivo de vídeos de terror. E, confesso, não me sentiria nem um pouco usurpada se não tivesse sido um dos atores protagonistas daquela trama...
Deviam ser umas três horas da tarde quando chegamos ao enferrujado portão de ferro. Para ir mais depressa, empurramos os três juntos, e quando ele cedeu disputamos outra corrida para ver quem chegava primeiro aos velhos túmulos dos suicidas, colocados no fundo do cemitério, bem atrás dos outros. Várias vezes pensei que talvez tenha sido impressão minha, mas algo me diz que eu realmente senti um pouco mais de frio nos segundos que levei para chegar até o ponto combinado. Levemente emburrada por ter sido a segunda, depois de Carlos Alberto ("Isso não vale", protestei, "os meninos sempre são mais rápidos"), não dei a mínima para uma possível queda da temperatura e, sem-cerimônia como sempre, subi no túmulo mais próximo para mais facilmente alcançar o topo do muro de pedra que circundava a área.
Andar sobre o muro do cemitério era, de longe, a brincadeira que mais nos agradava, embora nunca tivesse vencedores ou vencidos (ou talvez por isso mesmo). Numa época em que sonhávamos em ser equilibristas de circo, aquele era o lugar ideal para treinos, até porque ficava longe da vista de nossos pais e ninguém ali nos repreendia dizendo que poderíamos cair se não fôssemos mais devagar. Sem falar, é claro, que desistíramos de passar de túmulo em túmulo dando beijos nos anjinhos de pedra desde que Carlos Alberto ficara com a boca toda inchada após ser ferroado por marimbondos instalados atrás de um desses seres alados...
As primeiras voltas transcorreram sem problemas, eu na frente, de vez em quando dando piruetas para mostrar o equilíbrio, Carmem logo atrás e, fechando a fila, o Carlinhos (que hoje estariam já, como eu, perto dos 30 anos se tivéssemos seguido a ordem de ficarmos em casa). Por que, me pergunto, como já me perguntei milhões de vezes, éramos crianças tão teimosas? Talvez alguns puxões de orelha dados a tempo tivessem surtido efeito, mas, sinceramente, duvido – nada nos faria desistir das nossas traquinagens, não quando, fãs que éramos de desenhos de super-heróis, nos sentíamos iguais à Mulher Maravilha, ao Homem Aranha e ao Super Homem.
Cansada de andar e andar, Carmem, que se desinteressava mais rapidamente das brincadeiras que inventávamos, resolveu descer depois de uma meia hora. Como estávamos perto da fileira de sepulturas das criancinhas, algumas das quais enterradas há décadas, minha pequena companheira se dirigiu para lá – era outro de nossos passatempos ficar olhando as fotos dos falecidos, e tínhamos atração especial por aqueles, que tinham sido crianças iguais a nós. Teriam eles um dia brincado também nos mesmos muros daquele cemitério?, perguntáramos a nós mesmos não apenas uma vez. Ao ver o que nossa amiga fazia, Carlos Alberto resolveu imitá-la. Eu, que já estava me vendo a desfilar sobre a corda bamba num dia de espetáculo e lona cheia, resolvi treinar mais um pouco. E acho que foi o que me salvou.
Em meio a meus delírios circenses, cuidava pelo canto do olho o que os outros dois faziam. Se eles fossem embora e me deixassem, como eu poderia depois dizer para a minha mãe que tinha sido por idéia e insistência deles que eu me demorara tanto a brincar no cemitério? Claro, ela já estava acostumada e sabia que essas desculpas eram esfarrapadas, mas era melhor não facilitar... Por isso, desci ligeira do muro quando, depois de um minuto de distração, não pude mais ver onde eles estavam. Sem qualquer preocupação que não a companhia e a necessária desculpa (embora mais uma vez eu percebesse que a temperatura continuava a cair), saí a procurá-los atrás das fileiras de jazigos.
O velho cemitério era enorme, um verdadeiro museu para as nossas explorações pseudo-arqueológicas. Depois de percorrer algumas fileiras, acabei esquecendo-me de que estava atrás dos meus amigos e fiquei a ler (sim, tínhamos sete anos, lembro agora, pois já estávamos na primeira série), soletrando com dificuldade, os estranhos e enigmáticos epitáfios em alemão de alguns túmulos mais antigos. Depois, fui até onde estavam enterrados meus bisavós Jacob e Bárbara, que eu não conhecera, e demorei-me um minuto a rezar por eles. Não havia mais flores nos vasos, por isso corri até a parte onde não havia ninguém sepultado e cresciam algumas moitas floridas em meio a pés de aipim plantados por um ex-zelador.
Enquanto colhia alguns cachos amarelos ouvi chamarem meu nome, e virei-me lembrando que me perdera de Carmem e Carlos Alberto. Sem ver ninguém, levei as flores até meus bisavós e voltei a percorrer a área, desta vez chamando alto o nome de meus colegas de aventuras. Após uns 10 minutos de buscas, irritada porque não me respondiam, pensei que estavam escondendo-se de propósito e fiquei a matutar o que fazer. A zanga dizia que eu devia ir embora e deixá-los para trás, mas eu achava que deveria armar depois uma vingança maior. Se eu soubesse que nunca teria a oportunidade de me vingar, e nem o quereria mais, dentro de pouco tempo...
Comecei a correr entre os túmulos, pensando em surpreendê-los, mas constatava com uma raiva cada vez maior que o esconderijo que tinham encontrado devia ser muito bom. Não haviam saído pelo portão, disso eu tinha certeza – enquanto andava pelo muro, eu estava de frente para a entrada, e por ali eles não tinham passado. "Tá bom, eu desisto, não sei onde vocês estão", gritei, dando a senha para que aparecessem e esperando ouvir seus risos em resposta. Mas, mais uma vez, foi o silêncio que me respondeu. Foi então que percebi que algo não podia estar bem. No céu, o sol já ia se pondo, embora eu não tivesse percebido que se passara tanto tempo assim. E com o anoitecer, o frio se intensificava mais e mais, provocando-me calafrios – ou pelo menos foi o que eu pensei então.
Julguei ter visto alguém me espiar por trás de uma lápide do outro lado, e quase respirei aliviada. Ao chegar lá, outra vez não havia ninguém. Já que não querem aparecer, eu pensei, ainda crente de que tudo não passava de mais uma brincadeira (inventada pela Carmem, com certeza, pois ela adorava pregar peças nos outros), resolvi ir para casa. Os outros que fossem depois, até porque deviam estar me vendo de onde estavam. Foi eu colocar o pé no portão, no entanto, que eu ouvi o grito. A cidade inteira deve tê-lo ouvido, de tão forte e pavoroso que foi. Não foi socorro, não foi me ajudem, não foi nenhuma palavra que eu conhecia até então ou que vim a conhecer depois. Foi a mais pura manifestação de horror que se poderia conceber, provavelmente ainda maior. Tão verdadeira que eu sequer teria como pensar que se tratasse de encenação – podíamos querer ser artistas, mas ninguém tinha adquirido ainda tal capacidade dramática.
Os calafrios vieram mais fortes, enquanto o grito se repetia. Eram, misturadas e dezenas de vezes ampliadas, as vozes da Carmem e do Carlos Alberto, não havia dúvida. A tremedeira não tinha parado, mas, com a coragem típica dos pequenos que acham que podem enfrentar qualquer coisa, corri para o local de onde viera o som, disposta a salvar os meus amigos. Mas eu jamais, em minha curta vida até aquele dia, por mais filmes de terror que eu tivesse visto escondido de meus pais, tinha imaginado deparar com o que eu vi atrás do túmulo de um enforcado que recentemente havia sido sepultado – um daqueles sobre os quais costumávamos pular para alcançar a borda do muro. Até hoje, a cena povoa as noites em que me reviro na cama, encharcando os lençóis de suor e acordando aos berros.
No recuo entre duas sepulturas, uma das quais parecia ter sido arrancada do chão por uma força sobre-humana, estavam meus amigos. O pavor estampado nos olhos dos dois seria suficiente para acabar com quaisquer desconfianças que ainda me restassem, mas isso não era preciso: para garantir a veracidade da situação, a cara carcomida e cheia de vermes do homem que em vez de estar dentro caixão aberto ali do lado, como a lógica e a razão pregavam que devia ser, me encarava enquanto segurava meus colegas, cada um erguido do chão em uma de suas enormes mãos. O grito que se ouviu então saiu de minha boca, pois os outros não conseguiam mais pronunciar nenhuma palavra. E voltei a gritar quando também a lápide que ostentava a foto do suicida mais próximo caiu para um lado, dando espaço para outro rosto putrefato, e senti uma mão igualmente decomposta segurar-me pelo ombro...
Graças a Deus, a força quase sempre nos surge quando mais precisamos dela, e o medo é um combustível tão eficaz quanto o mais refinado derivado de petróleo. Sem conseguir desviar os olhos das outras crianças (não, das outras crianças vivas, pois já alguns pequenos túmulos começavam a liberar também suas cargas), desvencilhei-me não sei como do braço que tentava me cingir, e saí correndo de costas até tropeçar no portão. Nessa hora, em que o sol já se escondia em definitivo mas ainda lançava alguns raios capazes de ajudar a visão, vi pela última vez os rostos agora contorcidos – não sei se de dor ou de puro medo – daqueles que eram os meus melhores amigos. Então, tudo escureceu, inclusive meus olhos, e só voltei a mim quando uma multidão de pessoas que os gritos atraíram levantaram-me e me levaram para baixo de uma torneira esquecida a um canto.
O resto do dia, ou da noite, visto que soube depois já serem mais de 19h, foi uma loucura quase tão grande quanto a cena que eu presenciara, e continua igualmente gravado a fel em minha memória. Atrapalhada, eu tentava responder às perguntas que me faziam, mas as respostas me saíam incoerentes, entre lágrimas e gritos gaguejados. Só o que conseguia balbuciar era "os rostos, os rostos deles, eles estavam com muito medo". E via, mais uma vez e repetidamente, o mudo pedido de ajuda que neles estava estampado antes de eu desmaiar.
Nem as lanternas nem o potente farol trazido pelos bombeiros foram suficientes para que a Carmem e o Carlos Alberto fossem encontrados. Os voluntários das redondezas tinham se divididos em grupos para cobrir todo o cemitério, mas, passada mais de uma hora, os únicos achados haviam sido sete ou oito túmulos arrombados, com os corpos jogados fora do caixão – estranhamente para os outros, mas não para mim, próximos um do outro junto ao setor dos suicidas. Agora, já não era mais apenas eu que chorava baixinho. Ao meu lado, o pranto era ainda maior por parte das mães dos meus amigos, e os pais também já estavam quase entregando os pontos. O lado de fora do campo santo também foi investigado, mas se não havia nem as pegadas que seriam de se esperar no barro ainda mole da chuva dos dias anteriores, quanto mais a pista dos dois pequenos.
Alguns aventaram que devia ser seqüestro, e que o pedido de resgate viria sem demora. Outros, que surpreendêramos profanadores de túmulos em pleno ato e por isso fôramos atacados (ninguém parecia ver que estávamos ali há horas até tudo acontecer), os outros dois levados e eu escapara. Perguntavam-me isso e aquilo, querendo que eu confirmasse hipóteses, mas eu só conseguia chorar, até porque nem eu mesma tinha coragem de acreditar no que os meus olhos tinham visto. A meia-noite chegou, sem que nada de novo acontecesse. Para meu alívio, alguém se lembrou de me levar embora antes que os outros desistissem das buscas para aquele dia. Se é que se pode chamar de alívio uma noite de olhos arregalados, febre e tremores, na qual nem eu nem meus pais conseguimos dormir pois eu me negava a ficar sozinha.
Fiquei mais de um mês sem ir na escola, sem querer sequer sair de casa. O sol lá fora já não era mais convidativo como antes, e não adiantava os coleguinhas passarem lá depois da aula me convidando para brincar – sem a Carmem e o Carlinhos, eu não vou, respondia sempre, em minha surda teimosia, com a esperança de que tudo não tivesse passado de um pesadelo da noite anterior. Mas, no fundo, eu sabia desde o princípio: sabia que nada seria encontrado no cemitério, onde os cadáveres fedorentos já haviam sido reenterrados; sabia que não viria nenhum telefonema ou pedido de resgate; sabia que não se tratava de uma traquinagem que passara da conta; sabia que os meus amigos não voltariam jamais...
Isso aconteceu já fazem mais de 20 anos, e depois de meses de espera frustrada duas pequenas cruzes foram colocadas junto à fileira das crianças. A cidade inteira compareceu ao enterro simbólico, sem corpos, mas com muita emoção. A cidade inteira, menos eu – nada nem ninguém me faria voltar de novo àquele lugar. E nunca mais voltei, nem há cinco anos, quando meu avô foi sepultado. Preferi ficar na igreja, rezando por sua alma e por todas as crianças ingênuas e inocentes que acreditam que os mortos estão mortos, e que só os vivos é que podem nos fazer algum mal...

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