Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Olhar

por Pedro Faria


Abra os olhos”.

Uma voz sussurra em meu ouvido. Olho para o lado, não vejo ninguém. Eu tinha fechado os olhos por um segundo apenas.

Estou caminhando. Não lembro bem para onde estou indo. Talvez eu não saiba.

Talvez eu tenha simplesmente levantado, me vestido, e decidido sair para uma caminhada nessa bela tarde de inverno, o céu pouco nublado, as nuvens de um branco puro, diferente das comuns cinzas e negras de poluição que vemos tanto nos dias de hoje.

Não sei onde estou. Quer dizer, a rua. Estou bem longe de casa.

Há quanto tempo estou andando? Meus pés doem.

Então porque não paro?

Eu tento, mas não consigo. Preciso andar.

Há uma mulher a minha frente. Seus cabelos são pretos, e descem até topo de suas nádegas. Não é magricela, e não é gorda. Está de calça jeans, e sua camisa é preta e sem mangas. Seus braços são brancos, e há uma tatuagem em seu ombro direito.

Estou observando essa mulher há algum tempo. Tempo suficiente para perceber que a estou seguindo.

Ainda não vi seu rosto, mas dá para adivinhar que ela é linda. Já estive errado antes, é claro. Já houve mulheres que achei serem bonitas, apenas as observando pelas costas, mas que na verdade eram no máximo “simpáticas”, como meu avô diria sobre mulheres de rosto comum.

Essa não. Seu formato, em geral, não deixava dúvidas. Ela seria linda. Seria o tipo de mulher com o qual eu poderia morrer, ou matar.

Será que é por isso que estou caminhando? Querendo interceptá-la? Puxar uma conversa, talvez um convite para algum lugar. Será possível? Eu, que nunca fui de dar em cima de mulheres aleatórias pela rua?

Estou suando. Seco o suor de minha testa, e lembro que sou casado.

Lá está a aliança, em minha mão esquerda.

Não sou casado. Não, com certeza não sou. Como posso, se não me lembro?

Meus pés continuam doendo. Droga, não estou com tênis próprios para caminhar.

Agora, quanto a essa aliança. Como isso veio parar aqui, eu não sei...

“Abra os olhos”.

Estou parado. Há pessoas ao me redor. Chove, mas não me importo. A chuva me lava, manda embora o podre, o fétido, o errado. Tinha muito errado em cima de mim, agora... Ainda tem, mas menos.

Há uma mão em meu ombro. Olho para o lado.

A mão é nodosa, e denota experiência, e endurecimento. O endurecimento do espírito, que vinha com o tempo, com a vivência.

O terno do homem é cinza, e perfeitamente ajustado ao seu corpo. Seus cabelos são pretos, porém o cinza desponta na base de sua cabeça, como que se passado do terno, pelo pescoço, até os pêlos mais baixos de seu cabelo.

Ele não tem rosto. Meu Deus, estou ficando louco.

Não há olhos, nem nariz, nem boca.

Abro a boca e grito. As pessoas ao meu redor, igualmente sem rostos, se viram e me fitam.

Eu corro, para longe. Olhando ao redor, noto que estou num cemitério. Chego ao portão, e parado diante dele, de costas para mim, está a mulher.

Um pensamento aterrador cai sobre mim agora: E se ela não tiver rosto? E se, quando ela se virasse, eu visse o mesmo vazio que vi nos olhos do homem de cinza?

Não, eu enlouqueceria. Há beleza no mundo, não há apenas o vazio, a sombra, e a morte.

Eu caminho até ela. Tento parar, mas não consigo. Não quero olhar.

Estou a dois passos dela. Ela se vira.

Sim, é um clichê, mas seu rosto é o mais bonito que já vi na vida.

Ela é branca, mas não é pálida. Há uma cicatriz em seus lábios.

Seus olhos são negros, da cor do cabelo, que cai sobre seu olho esquerdo.

Ela sorri, e eu caio de joelhos.

Tenho lágrimas nos olhos. Lembro do anel: Não uma aliança, apenas um anel, no dedo errado.

Ela se abaixa, seu rosto fica em frente ao meu.

O beijo vem naturalmente, de iniciativa dela. Eu fecho os olhos

“Não, abra os olhos!”

E vejo tudo:

Era eu no caixão. Eu, sendo colocado a sete palmos embaixo da terra.

Sinto um medo me consumindo, como nunca tinha sentido antes. A mulher continua me beijando.

Ela se afasta. Seus olhos brilham um brilho negro, profundo, que me faz pensar em Dante e em buracos negros, e em morte.

“Não há beleza”, ela me diz.

Seu segundo beijo é agressivo, sua língua me invade como uma lança, matando meus sentidos um por um, e eu caio na escuridão.

“Abra os olhos”

Estou deitado. Há pessoas ao meu redor. A chuva cai, e faróis me iluminam.

Uma mulher de vestido branco dá um grito agudo.

Um homem de cabelos grisalhos e terno cinza balbucia, “eu não o vi, ele pulou na minha frente”.

Eu engulo o sangue.

E, entre a multidão que me cerca, está a mulher. Seu olho esquerdo ainda está oculto sob o cabelo. Ela me olha fixamente, e sorri um sorriso malicioso e sedutor.

“Você está vindo para mim”.

Sim, estou indo. E feliz.

Eu fecho os olhos, e a escuridão dela me leva.


Share




0 comentários:

Postar um comentário