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domingo, 21 de setembro de 2008

Labirintos



Marcia Szajnbok


- Aqui viveu Catarina de Médicis, uma das mais astutas e manipuladoras mulheres da história da França. Ela era uma menina ainda, tinha apenas 14 anos quando se casou com Henrique II. Apesar de todo o seu poder, foi publicamente preterida pelo marido, que presenteou Diane de Poitiers, sua amante, com este castelo. Dizem que nunca se curou desse orgulho ferido. Após a morte do rei, Catarina obrigou Diane a devolver todos os presentes que ganhara de Henrique II, inclusive o castelo, e para descaracterizá-lo, mandou construir a grande galeria sobre a ponte em arcos que atravessa o rio, e projetou um novo jardim que deveria superar, em beleza, o antigo, feito pela rival. Mas há quem diga que Diane nunca se desprendeu deste lugar, e até hoje seu espírito disputa espaço com o de Catarina...
O dia estava nublado e quente, abafado. O Loire refletia o céu e tornava o ar úmido. O grupo era grande, estávamos todos cansados e, a partir de um certo ponto, todos os castelos me pareciam iguais. A guia turística contava mais uma história. Esta versava sobre as personagens que passaram por Chenonceau, várias mulheres unidas por complexos laços de parentesco e rivalidade. Meus pés doíam e foi por isso que decidi fazer uma pausa. O que veria no interior daquele edifício que já não tivesse visto nos últimos dois dias? Vitrais, escadarias estreitas, armaduras, os aposentos do rei, a cama da rainha... O bosque junto ao castelo me pareceu bem mais convidativo para um descanso de quarenta minutos, tempo que estimei iria demorar a visita do grupo no interior do castelo.
O outono francês tingia o cenário de amarelo-alaranjado, e era marcante o contraste de temperatura entre as áreas ensolaradas e de sombra. Dentro do bosque, o ar puro e fresco cheirava a grama molhada. Enchi os pulmões e, surpreendentemente, tive um acesso de tosse abrupto e imotivado. Foi uma sensação estranha, como se uma força invisível tivesse me apertado a garganta. Hoje, penso que deveria ter compreendido melhor o que se passava ali, e retornado para junto do grupo de turistas. Mas na vida, muitas vezes, só nos damos conta do perigo quando já se fez tarde demais.
Passado algum tempo, notei que não havia mais ninguém por ali e que o burburinho dos arredores do castelo tinha se tornado inaudível. Apurei os ouvidos: o silêncio só era quebrado pelo ruído dos meus próprios passos amassando folhas no chão. Um certo desconforto: de repente, aquele lugar que me parecera tão convidativo começava a se tornar um pouco sombrio. A frescura agradável do ar protegido pelas árvores cedia lugar a um vento gelado, que me arrepiava a pele mesmo sob o agasalho.
O estado de alerta sempre nos torna um pouco sugestionáveis, de modo que não consigo até hoje afirmar que realmente vivi tudo o que se passou em seguida. Posso ter apenas imaginado, delirado, alucinado, não sei. Há quem diga que o sobrenatural só existe dentro da mente humana. Mas naquele momento, tudo me pareceu terrivelmente real.
Intuitivamente, comecei a procurar a trilha por onde havia entrado, pensando em retornar aos jardins do castelo. Todas as veredas, entretanto, me pareciam iguais. Não conseguia reconhecer por onde havia passado, e depois de algumas tentativas já não sabia exatamente em que direção seguir. Sem perceber, apertava os passos e, quando me dei conta, estava correndo. O coração disparado, a respiração ofegante, tinha a sensação de estar andando em círculos. Por duas vezes virei o rosto, tomada por uma espécie de certeza de que havia alguém atrás de mim, mas não vi ninguém. A impressão de estar sendo observada, entretanto, crescia na mesma medida em que meu pânico aumentava.
Entre as árvores vi alguns arbustos de espinhos. Não me lembrava de tê-los visto quando entrei no bosque. Pareciam ter surgido do nada e se proliferar rapidamente. Em alguns trechos, obstruíam ou estreitavam a passagem, criando um labirinto que me impedia de sair do bosque. Impossível dizer se o que os fazia se comportar assim era alguma força mística, ou tão somente minha claustrofobia.
Tentava manter meu raciocínio claro, repetia para mim mesma que aquilo era apenas uma crise de ansiedade que logo passaria, que tudo ficaria bem. Mas há circunstâncias em que toda informação que podemos acessar não faz frente ao transbordamento dos sentidos e das emoções. Eu sentia algo muito ruim ali, sentia maldade ao meu redor. Aqueles arbustos tomavam formas de enormes garras, e era difícil lutar contra a idéia de que estavam ativamente tentando me agarrar.
Recordava as histórias contadas pela guia. O ódio e a vingança que moveram a poderosa Catarina a armar intrigas e ardis, as perseguições, os assassinatos, essas tramas do passado me envolviam como uma onda. Meu pensamento corria por lembranças ruins, pelos acúmulos de minhas próprias raivas, e pelas pessoas pelas quais ainda nutria um insuspeito ressentimento. Não supunha haver, dentro de mim, tantas câmaras secretas, cheias de tantos rancores. Entre a folhagem, surgiam pontos brilhantes, pareciam olhos. Não que eu os visse, apenas os pressentia. Olhos dos meus desafetos, os meus próprios olhos refletidos neles, os olhos das mulheres de Chenonceau. Ora invejosos e vingativos, ora cúmplices e curiosos. Mesmo vestida, a força daqueles olhares me observava nua, sob as roupas. Como uma varredura, deslizavam pelo meu corpo como que em busca de tomá-lo. Havia ali um misto de violência e sedução. O brilho daqueles olhares invisíveis me hipnotizava e eu me deixava ficar ali, prostrada, enquanto elas tiravam de mim um tanto de força, de energia. Olhos vampiros, roubavam-me a vida.
O desespero chegou ao auge quando comecei a escutar os risos. Risos debochados, depois gargalhadas, cada vez mais altas, cada vez mais fortes, formando um coro de escárnio que ecoava-me dentro da cabeça. Parecia que o mundo se desfazia, que meu corpo se despedaçava, que minha vida escoava pela pele e penetrava naquelas mãos de espinhos que, nesse ponto, me aprisionavam completamente. Imersa nessa vertigem de sons e luzes, medo, volúpia e entrega, deixe-me levar. Até que tudo se apagou.


***


Não sei como saí de lá. Voltei a dar acordo de mim já fora do bosque, com uma multidão de turistas ao meu redor, a guia me oferecendo água, o som repetitivo de uma sirene de ambulância se superpondo às vozes. Não conseguia falar, queria apenas ir embora dali.
Aos poucos, no caminho de volta, fui narrando minha história. A maioria a interpretou como um ataque de pânico, alguns atribuíram minha crise ao cansaço, ao calor, à fome ou à sede. Quando falei dos olhos e dos risos, percebi em alguns rostos um ar preoupado. A guia explicou que naquela região não nasciam arbustos de espinhos, por conta do clima, da temperatura e do solo. Achei melhor não comentar mais nada. Talvez eles estivessem mesmo certos, e tudo não passasse de fantasia. Estava exausta, queria dormir, dormir profunda e indefinidamente.
O único detalhe que nunca consegui explicar foi que, ao despir-me naquela noite, percebi meu corpo todo arranhado. Braços, pernas, dorso, abdome, peito. Em toda parte, filetes de sangue coagulado traçavam estranhas tatuagens. E, como que enfeitando esses desenhos, aqui e ali restavam pedaços de espinhos.

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