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segunda-feira, 18 de abril de 2016

BORA ONDEANDO














                                                                   (Renoir, Pôr do sol no mar).
                                     
Praia. Na distância que me dá a areia quente, penso na onda, matéria velha e nova que sempre nos tonteia. A onda anda e por onde anda a onda?, perguntava o poeta. Sumiu. A onda. Meteu-se pelo canto, meio das coisas, brilho, claridade e gosto delas. Veio molhando tudo com seu cheiro bom, de coisa marinha e doce, que faz bem pra pele, irriga, preenche.
Mas a onda, coitada, não sabe de onde veio nem quem é, só sabe que é onda, talvez nem isso, a onda apenas é, existe. Sem perguntas, sem queixas, sem tormentos. A onda. Apenas uma onda solta no mar grande da inquietação que é, sempre e só, humana.
Nasce repentina, coordenada, e sua morte vem rápida, muito mais rápida que a das borboletas, essa vidinha frágil que esvoaça e encanta. A onda. Como a borboleta, é inocente da morte. Não sabe quando vai terminar, nem sequer que vai terminar um dia.

A onda? Onde?
Quebrou, já foi, você viu?
Qual? Lá perto do barquinho amarelo?
Não, a onda, aquela ali, mais para o fundo, vê? Vai formar de novo, ali, no mesmo lugar, desta vez você vê, está quase na ilhota, a que tem uma palmeira bem grande no meio.
A onda? A mesma?
É, ali, olhe, não viu?
Mas é a onda? A mesma? É dessa que você falava?
A onda, a onda... Você não viu, agora não vai mais, a maré tá subindo, vamos, vamos embora, já foi, passou.

Na distância da areia quente, penso a onda e penso minha avó. Ter de seguir tocando o corpo cheio de dores, sem vontade, mantendo o mesmo simulacro, rotina de uma vida que não é mais mas que ainda não foi pra sempre.
Avó. Mãe pela segunda vez. Será?

Engano de vida. Falo que vou me jogar do oitavo andar, ninguém acredita. Disseram que iam botar tela, mas não puseram, melhor. A vista da cidade é minha, não podem me tirar. A janela, a vida, a vista, a mesinha de centro da sala, é tudo meu ainda. É muita gente querendo dar palpite. Eu sei que é porque estou velha. Eu sei que é muita vida e também não sei para que tanta vida. Mas ela é minha ainda.
O único gosto que ainda tenho é o do chocolate, como várias vezes ao dia. Me adoça um pouco, porque, para piorar, não sei por que tem que ser assim, mas a gente chega nesta situação e passa a ter a boca sempre amarga, não importa o que se faça, a pasta que se use, a bala que se chupe. Uns dizem que é dos remédios, outros dizem apenas que é da idade, só isso, mais uma coisa que a vida apronta com a gente. Podia restar ao menos isso, o paladar, mas até a memória dos pratos que fiz na vida é vaga. Aqueles, que comíamos quando estavam todos aqui. As crianças tão pequenas, netos, os meus filhos todos, alegria muita, tomavam refrigerante, comiam chiclete e biscoito.
Não reconheci minha irmã numa fotografia.
Na hora que perguntei para a minha neta quem era que estava lá, na foto, ao meu lado, eu vi a decepção em sua cara. Vi mas não pude fazer nada. Por mais assustador que seja, é fato. Eu não reconheci a minha irmã. E nem é Alzheimer, antes que venham me dizer, porque os exames não mostram nada.
Mas como então vou contar para ela o que vivi sem me confundir?

Baralho de fragmentos, não vou conseguir o que queria, um relato de uma mulher nascida no final dos anos 20 do século passado. E não uma mulher qualquer. Minha avó. A onda, o mar, a areia doce.
            Onda que está indo. Indo. Indo. Quebrando. Só que ela sabe que da arrebentação que vem

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