Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Monte Casca

Dois meninos, amigos de todas as tardes, após a aula observam uma cena que se repete, com algumas variações. Estão sentados na grama da beira da lagoa. Antes de a cena começar, cogitavam seguir ou não até a ponta do trapiche. Resolveram esperar e observar. Um homem nem velho nem jovem, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo, um tanto grisalho e pálido seguidamente estaciona um carro azul, mais ou menos no mesmo horário, perto de uma formação irregular e vultosa de areia misturada com pedras e argila, de cor amarronzada. O cômoro provavelmente é o amontoado de entulho que sobrou das obras de revitalização da área de lazer ao longo da margem da lagoa, um empreendimento que se arrastou por quase uma década e há menos de um ano foi dado por terminado pela prefeitura. 

Igor chegou na cidade recentemente. Seus pais vieram de alguma região do país empolgados com o crescimento econômico que a televisão anunciava e as possibilidades de mina de ouro que um tal Polo prometia. Alex mora em frente a lagoa desde sempre. Os dois vão juntos à escola e na volta gostam de ficar por ali, entre a praça, a grama e o trapiche, brincando muito seriamente de explorar o lugar e elaborar teorias sobre o comportamento dos vizinhos e dos estranhos que se aproximam. Lá vem ele de novo cavoucar no morrinho, avisa Igor, cutucando o amigo. Não é um morrinho, rapaz. Então não sabes? Não sabia de nada e redobrou a atenção: não sei. Me conta?

Aquilo apareceu de um dia para o outro e ninguém consegue explicar como, porquê ou do que é feito, parecem fingir que não existe mais. Já tentaram desmanchar com pás e enxadas, mas é tão duro que nem se mexeu. Acabaram desistindo de remover dali. Não tenho prova, mas acho que sei o que houve. Quando trabalhavam aqui, eu via os empregados, os caminhões, o manda-chuva, via tudo. E era mau o manda-chuva, o chefe de todos. Ele gritava muito com os homens, batia os braços nas pernas de tão furioso. E tinha um com quem brigava mais, o Torresmo. Ele era atarracado, um cara baixinho e forte, suava que nem sei carregando carrinho de mão com argamassa. Nunca retrucava o manda-chuva. Com o tempo, a pele do Torresmo foi criando umas bolotas, umas feridas diferentes, foi formando uma casca que engrossava dia a dia, não sei se de sol ou de brabo que ele tava com o chefão. Reparei que o Torresmo era o último a ir embora. Ele ficava parado olhando a lagoa até anoitecer completo. Dava para ver lá da janela de casa. 

Enquanto Alex contava, o homem desceu do carro e andou até o morrinho. Passou as mãos sobre a superfície da elevação em diversos pontos, examinou algumas fissuras, fotografou com o celular. Depois, retirou do bolso uma colher de sopa e tentou, em vão, fazer buraco na areia. Igor ouvia o amigo e seguia com olhos arregalados o homem diante do morrinho. Quer dizer que o Torresmo criou tanta casca que virou o morrinho? E o homem com a colher, quem é? O que ele quer? Morrinho, não, já te disse. O nome é Monte Casca. O Torresmo merece respeito. E aquele é o manda-chuva.

Share


Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


0 comentários:

Postar um comentário