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terça-feira, 15 de março de 2016

memórias


Não tinha ido despedir-se e, se lhe tivessem perguntado, teria dito: foi um acaso, uma conjuntura, tudo a dispor-se para que não fosse e o relógio que não me despertou.
Margarida a justificar não ter estado no cais, ela que nunca ficou a acenar lenços senão, muito criança, dependurada na janela de um comboio, a mão de um a despegar-se da mão do outro, a humidade cálida escorrendo, e depois irem-se esfumando os rostos e os corpos e a paisagem: cada vez mais longe e, a crescer no peito, a espraiar-se pelo corpo, os primeiros sinais da solidão e da saudade.
Margarida nunca viu mães e esposas e irmãs, tias, amigas, namoradas, os xailes e os lenços e os saltos altos e as saias acima do joelho ou o saia-casaco de bom corte, mulheres irmanadas num mesmo desgosto tartamudeado em frases tontas e unhas roídas até ao sabugo.
Mães e noivas e namoradas e esposas. Mulheres anónimas a chorarem filhos que partiam e filhos que tinham ficado apenas um projecto ou com um pai que nunca iria conhece-los.
Margarida nunca foi esperar nem despedir-se dos soldados.
Nem nunca esteve, o sol ardendo-lhe o pescoço, numa daquelas cerimónias. Nunca viu a medalha ser colocada no embargo vertical dum pai de filho morto, espetada na lapela dum fato emprestado, negro como convinha à cerimónia e ao luto, ou no xaile muito preto duma mulher com rosto de menina.
Margarida nunca presenciou.
O que soube, viu nos documentários a preto e branco que passavam nos cinemas, antes de correr o filme.
Tivesse sido de outro modo, se Margarida tivesse vivido, podia afirmar: no dia em que fui despedir-me, chovia na capital do império.
Ou podia dizer que o sol escaldava.
Ou nem diria nada, que os desgostos remetem a uma mudez a semelhar o patológico, mesmo quando embebidos em rios de lágrimas.
Os soldados partiam.
Margarida só os conheceu namoriscando: a cerveja rolando de um a outro e o fresco da sala de cinema e a música troando numa matiné dançante e a certeza de que partir era ainda futuro.
Se tivesse estado num cais, poderia afirmar que a chuva, quando caía, ensopava os que acenavam lenços muito alvos, alguns com barras coloridas, e nenhum dos que acenava, e nem nenhum dos outros, nem aquelas duas abraçadas num choro, nenhum deles saberia localizar o seu José, o seu Fernando, o seu Manuel, na confusão que era o navio repleto de homens que atulhavam a amurada, e até os barcos salva-vidas, como se pode ver em fotografias da altura.
 – Será este? Olha, é aquele!
E apontavam a tentar adivinhar, cada um acenando no desespero de, muito em breve, não poder repetir o gesto.
Margarida nunca esteve a ver o navio desatracar devagarinho, e depois ir, muito lentamente, pelo Tejo adiante, e ficar apenas um pontinho, apenas a ideia de navio, e nem navio nem soldados na neblina que entretanto se formava, e as mulheres lancinando aflitas: Henrique, Matias. Elas a chamarem os nomes de maridos e filhos e outros parentescos ou apenas vizinhos; elas a virem despedir-se e clamando se nunca mais voltariam a vê-los.
Margarida nunca veio embrulhada na mole de gente, o cais a ser abandonado e ela a estranhar-se dum sentimento de impotência semelhante ao que tinha sentido num dia em que, menina ainda, tinha visto prenderem os cães numa carroça e ela, colada à parede do passeio estreitinho, sem um grito, um choro, um nada mais que a descoberta daqueles sentimentos: impotência e injustiça enrolados um no outro, e teria sido preciso decorrer um tempo para que Margarida soubesse dar-lhes nome.
Ela nunca foi ver o navio perder-se lá ao fundo onde o rio já não é senão água salgada e o farol parece uma tartaruga com apenas um olho que viesse nadando para entrar na capital do império e nunca mais chegasse.
Não viu os passos dos que tinham vindo despedir-se a descolarem-se muito lentos e cada um ainda querendo olhar o filho, o marido, o noivo, o irmão. O primo.
Margarida apenas viu nos documentários e ouviu contarem-lhe.
Namoradas e mães, e nenhuma sabia de futuros que já estavam inscritos no destino que começava, ali no cais, a ser tecido, devagarinho.
Um dia, poderiam vir dizer-lhes: morreu numa emboscada; desfez-se no rebentamento de uma mina; não sabemos ainda quando chega o corpo.
Tivessem-lhe dado tal notícia, e Margarida recordaria o cemitério dos coelhinhos que a coelha desmamara, uma cruz de cana em cada cova; e lembraria as cachaçadas certeiras no pescoço dos coelhos adultos, tal e qual as granadas que teriam rebentado sob as viaturas.
E nem havia de traçar o sinal da cruz  por nunca ter sido esse o seu hábito, mas releria as cartas que lhe tivessem escrito, folhas muito finas, muito levezinhas, cada folha escrita na frente e no verso. Cartas enormes, cada recanto da folha recoberto com palavras escritas com letra miudinha para que coubesse e, ainda assim, ficara tanto por dizer.
Mas Margarida não teve soldado de quem lesse folhas imensas recobertas de letras, linhas e mais linhas de tinta que escorreria se ela chorasse. Palavras dolorosas. Uma, duas, muitas folhas, e era quase certo que houvesse, a cair de entre todas, a metade rasgada de uma outra.


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