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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A origem de Joseph K.

Em uma faculdade de direito que certamente só existe na minha cabeça cada disciplina teria como guia uma determinada obra literária - ou cinematográfica. Todos temos os exemplos mais evidentes na ponta da língua - o que não significa que esses mesmos exemplos tenham sido lidos: No Brasil  não faltam opções. Basta lembrar de Machado de Assis e Monteiro Lobato (A barca de Gleyre é imperdível, ainda que, certamente, fira diversas suscetibilidades).

Como os americanos sabem muito bem, a lista é imensa: O Mercador de Veneza (quase tudo de Shakespeare, aliás), Balzac (curso completo de direito civil), Charles Dickens (boa parte do direito comercial e também de direito do trabalho) e tantos outros. Kafka também é incluído nessa lista. 

Um autor - fundamental para Kafka, cem anos depois - costuma ser ignorado. Heinrich von Kleist (1777-1811) foi fonte de inspiração do criador de O Processo. Em fevereiro de 1914, uma carta a Felice, ele se desculpa por não ter conseguido escrever na noite anterior - ficou lendo Kleist até muito tarde, mais especificamente Michael Kohlhaas "provavelmente pela décima vez").

O fato é que MK era, de fato, a obra de Kleist que mais encantava - e aterrorizava - Kafka. Para Carpeaux, Kleist descobriu que a lei, injusta contra os indivíduos, era o fundamento da sociedade. Este é o tema de MK: um homem bom, ofendido pelos poderosos não consegue encontrar no Estado a justiça. Acaba por se tornar um assassino cruel, liderando uma revolução anárquica - na época de Lutero (igualmente um personagem nesta novela). 

O enredo: Um dia, saindo para negociar cavalos, MK é surpreendido com o pedido de um salvo-conduto; é obrigado a deixar seus animais e o seu ajudante nas terras do barão e voltar à sua cidade, onde descobre que aquilo não deveria ter acontecido. Retornando ao castelo, descobre que o ajudante foi espancado e os cavalos, utilizados em trabalhos pesados. Quer a reparação desse absurdo. Mas o pedido acaba nas mãos de um parente do barão, e todos sabemos o que irá acontecer... sua esposa é ferida ao tentar recorrer à princesa. 

A história é passada na Alemanha do século XVI, que, não podemos nos esquecer, não existia como um país unificado, mas como uma infinidade de ducados, principados e pequenos reinos. 

Mas é uma aula de teoria geral do direito como poucas que você assistirá - a relação entre o seu direito e o Estado; a relação entre a sua vontade e aquilo que o Estado pode permitir que você faça na busca do seu direito, está (quase) tudo aqui.

Na presunção de que você não leu o livro nem viu o filme estrelado por Madds Mikkelsen, não revelo o final da história nem o destino reservado a MK. Mas, digamos, ele vai além do que foi Joseph K. O personagem de Kafka sucumbe e se entrega ao sistema que lhe é incompreensível. Se Kafka conhecesse o Brasil, seria considerado um escritor realista... 



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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
todo dia 04


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