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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM HOMEM FORTE

(Este conto está no meu livro A Primeira Noite de Melissa e já foi postado na Samizdat. 
Mas diante do retrocesso que tramita e mira a todos nós, acho que vale a pena ler 
- e refletir - de novo.)


Altas horas night adentro. Marcel dança no meio da pista com recém conhecida Paloma,
que levanta os braços, joga a cabeça pra lá e pra cá, seus cabelos dourados esvoaçam,
formando esculturas estroboscópias que piscam ensandecidas. Paloma atraca em Marcel
de costas. Sobem, descem, descem, sobem, esfregam-se glúteos, dorsos e lombares.
Braços tentam se encontrar em reverso, quase se tangem produzindo centelhas.
O DJ liga o turbo. Paloma gira de repente, Marcel acusa o golpe, que delícia mais doida,
tocam-se mãos ao alto, ela roça seu corpo contra o dele, ele oferece a cara máscula,
ela aceita, caminha com os lábios pelo rosto grego do homem forte e sarado,  mordisca um
lóbulo da orelha direita, desce a ponta da língua em riste percorrendo o contorno de uma
barba rente e bem feita.  O baticum contagia. Os narizes colidem levemente, ensaiam um beijo,
que desacontece: ela afasta a boca, sorri carrasca, olhos sádicos contra olhos mendigos,
ela finge que vai mas não vai, faz tremer o epicentro do rapaz, e cai na dança novamente,
deixando Marcel um cachorro curvado que copula o ar em plena pista de luzes lisérgicas.
O som alto rege os instintos. Tudo cresce no corpo e na alma dos dois, até que Paloma
sonsa volta à carga e passeia suas mãos bem feitas pelas costas de Marcel,
como se trouxesse para si a propriedade que acabara de tomar posse.
Ele retribui o carinho com mesmo passeio pelas suas coxas, quadris e  polpas, verso e frente,
ousando levantar o vestido justo e imiscuindo os dedos pelos entrepernas aveludado,
que se entrega úmido, morno e receptivo. Dane-se se alguém parou para ver.
O que cabe neste momento é um beijo explosivo, devido, entranhado. Nada os detém.
Paloma dedilha a perna de Marcel e encontra algo volumoso abaixo da cintura, caindo enviesado
e rijo pela esquerda. E esfrega a mão excitada, olhos fechados, bocas com bocas,
até que de repente, para e se afasta no meio da pista.
- Que é isso, meu tigre?

Ele a traz para mais perto, pega pelos braços e cochicha no seu ouvido.
- Isso se chama tesão. 

Ela segue passando a mão no volume.
- Tesão que me dá tesão. 

Ele sorri maroto.
- Você gosta disso? Tem medo não?

Ela se derrete:
- Não. Adoro. Isso me enlouquece.

Ruazinha bucólica, apartamento charmoso de Paloma. Adentra o casal sôfrego e
agarrado, uma matéria só, átomos em fusão. Ele tira a camisa, ela tira o vestido por
cima, fica só de calcinha, já que o sutiã foi junto. O minueto frenético ficou na boate.
O som imaginário agora é um "Je t'aime, moi nos plus", calmo e pulsante, que dita uma
câmera lenta eterna de gestos e tremores.  Ela se ajoelha de frente para ele, abre o cinto
e vê o que quer ver. Na cintura, entre o jeans e a cueca Calvin Klein, emerge uma
pistola Glock 9mm preta e provocante. Paloma geme. Segura no cano
como se fosse uma guloseima. Alisa, alisa, fecha os olhos, leva aos lábios e chupa.
- Tesão, tesão, tesão.

Marcel pega a arma e afasta de sua boca.
- Tem coisa melhor para você, isso é muito perigoso. 

Ela treme.
- Quero tudo... duas armas... que homem é esse, meu deus? 

Os dois se jogam no sofá. Marcel passeia a pistola pelos meandros secretos do
corpo de Paloma. Rasga a calcinha com a alça de mira, ela morde os lábios.
Ele se coloca entre suas pernas receptivas, que bailam em movimentos ondulantes,
sincronizados, crescentes, vigorosos, meigos e ferozes ao mesmo tempo.
Ela goza com a pistola no rosto, passando a língua na coronha, beijando Marcel
e dando graças aos deuses por acoitar um macho tão forte, de calibre duplo
e sensações múltiplas.

Nus na cama, pausa para repouso. Ela molenga refestelada sobre o peitoral atlético
do parceiro, que aponta a pistola para o alto e admira o brinquedo:
- Glock 9mm automática de repetição. Se quiser tem silenciador. 

Ela é debochada:
-Vai me matar sem ninguém ouvir? 

Ele é fofo:
- Que é isso, gata? Isso aqui nunca matou ninguém, só defesa. Às vezes, um 
sustinho em quem se mete a besta comigo. No trânsito, na night, na vizinhança.

Ela é curiosa:
- Você tem porte de arma?  

Ele explica:
-  É do meu pai. Quando saio, ele me empresta. Ninguém tira onda pra cima de mim. 

Ela monta súbita sobre ele. Vai cavalgar.
E ronrona gostoso:
- Você disse que é Glock 9mm de repetição... então, tá na hora de repetir.

Fim do intervalo. Os dois riem, se grudam e partem para o segundo, terceiro, quarto atos.

Marcel deixa o apartamento sozinho antes do sol raiar. Sonolento, exaurido, cheirando
à Paloma entre os dedos, caminha levitando em direção ao seu Cherokee. Aperta o
controle da chave do jipão e não se dá conta que tem companhia.
-Perdeu, playboy!  
-Entra no banco de trás sem chilique. 
- Mas antes, vamos apalpar esse corpinho macho. 

Três vozes sinistras. Três armas apontadas a uma mesma cabeça. Três rostos escondidos
sob bonés e óculos escuros em pleno breu. Marcel petrificado com as mãos sobre o carro
se deixa revistar. Um dos bandidos tira tudo dos seus bolsos: carteira, celular, dinheiro,
chave e um surpreendente e maravilhoso bônus.
- Olha isso aqui, mano!. 
- Uma Glock novinha, chefia!"  

Marcel leva um cachação.
- Você é policial ou é otário mesmo? 

Marcel nada diz.
- Só pode ser federal, mano. Filhinho de papai não anda com uma dessas. 

A ruazinha bucólica deserta e a escuridão favorecem à movimentação relâmpago. Marcel
apaga com um cruzado de direita e duas coronhadas.  É jogado no porta malas,
dois dos bandidos montam com os joelhos sobre ele. O terceiro zarpa com o carro
pelas ruas fantasmas. Sem serem incomodados pelas patrulhas indolentes, chegam,
enfim, a um descampado baldio. Nem um grilo, nem um sapo, nem um barulho de vento.
- Tá vivo, mano?  
- Tá respirando, chefia. 

No chão, entre duas árvores secas, Marcel é despido de bruços, com solenidade e requinte.
A camisa Armani amarra seus braços pelas costas. O jeans e o cintos Diesel prendem seu pés,
um em cada tronco, fazendo da vítima um Y em decúbito dorsal. A cueca Calvin Klein é
embolada garganta a dentro, vai que ele acorda e grita. O chefe manda.
- Traz o kit felicidade. 

Marcel ameaça gemer. Tenta levantar a cabeça, abre uma fresta de olhar e vê o mundo invertido.
O chefe é compreensivo.
- Tá vivo, federal? Então presta atenção. Isso aqui é um negócio. 
- Você trocou sua Glock 9mm das Forças Armadas por esta arma aqui, ó, ó, olha o 
que está escrito: Manufatura de Brinquedos Estrela. 

Um comparsa é piedoso:
- Repara só, fedegoso, raspamos a alça de mira para não machucar você. 

O outro comparsa é benevolente:
- A gente é legal com policial ou com otário. Tanto faz.

O chefe prossegue:
- E vamos botar essa camisinha lubrificada com KY no cano também 
pra não machucar você. Não vai doer nada, são só 12 centímetros até o tambor. 

A providência divina faz Marcel desmaiar.
O sol já está a pino, a brisa sopra quente, as varejeiras rodeiam assanhadas e
os urubus revoam em tocaia, quando Marcel começa recobrar os sentidos.
Confuso, atordoado, sedento, imobilizado, com a cara de perfil grego na terra batida,
gosto de sangue seco na boca, dormente, doído, ardido. Ouve um burburinho
de vozes curiosas, histéricas, apavoradas, perplexas em sua volta. Tenta gritar
por água e socorro, mas só consegue um choro fino e baixinho.
Pensa em Paloma. Pensa que ela nunca pode saber disso.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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