Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 14 de novembro de 2015

A FIGUEIRA

                                                      A FIGUEIRA
Cecília Maria De Luca

Esta noite tive um sonho estranho. Sonhei que era poeira e que o vento me levava por sobre vales, rios, montanhas e mares até me depositar suave, um punhado de cinzas, aos pés e à sombra daquela árvore frondosa. E, finalmente, como um véu que se rasga, consegui desvendar o mistério da eternidade. Acordei sentindo-me intrigada, mas leve. Curiosa, tentei porque tentei, procurei porque procurei entender o significado daquele sonho. A tarde já ia a meio quando me lembrei da história que um dia ele me contou enquanto eu devorava os figos doces daquela árvore bendita.

 

Ele me contou que a figueira gigantesca dava frutos deliciosos que ninguém mais comia tanto se fartaram, a não ser os pássaros que ali faziam ninhos e a festa, é claro. Ele me contou que, a princípio orgulhoso de sua bela árvore, pouco a pouco começou a se incomodar. Os frutos caíam sobre o capô do carro, espalhavam-se pelo chão e eram pisoteados pelos netos quando brincavam, causando muita sujeira. Viúvo, morando sozinho, era dele a tarefa de limpar a casa e o jardim.  Vez em quando algum adulto desavisado escorregava e ia ao chão. Um dia, sua sogra que o visitava quase se machucou seriamente depois de patinar sobre os figos apodrecidos. Foi então que se cansou de vez e resolveu cortar a figueira. Habilidoso, cortou rente e ainda ouvia o som da serra elétrica quando a viu tombar. Cavou em volta do tronco enorme e com a ajuda de dois homens arrancou as raízes fundas. Ele me contou que não foi sem sofrer que o fez. Lembrou-se de quando a plantara, tão jovem era ainda, logo depois de construir a casa no meio do terreno enorme adquirido com muito sacrifício. 

Ele me contou que a árvore crescera sob seu olhar atento e cuidadoso. De como ficou feliz quando, após a primeira florada, os frutos começaram a se formar. Podia sentir ainda o sabor dos primeiros figos colhidos. Foi com os olhos molhados que acompanhou a remoção da árvore e raízes para o caminhão de lixo, trabalho feito pelos homens da Prefeitura, fortes e indiferentes. Bem, passado era passado, tentou se consolar. A árvore não mais lhe aborreceria e ele não iria ficar ali com aquele saudosismo bobo que só lhe faria mal. Melhor assim, pensou ele, olhando para o carro estacionado sem a costumeira sombra, mas limpo.  

Ele me contou que, apenas um dia depois, infartado, foi levado às pressas ao hospital. Colocaram um stent numa de suas artérias, recuperou-se completamente e teve alta. Estaria tudo bem, não fosse o olhar esquisito de seus filhos e um telefonema de seu clínico pedindo que fosse ao seu consultório dali a uma semana. Tentou não se preocupar, dizendo a si mesmo que deveria ser qualquer exame de rotina. Não era. Os exames feitos antes do procedimento revelaram um tumor no timo. Aquela massa tinha que ser removida e os médicos não sabiam precisar ainda o tamanho do estrago. Marcaram uma nova cirurgia e, naquela noite, não conseguiu dormir tamanho medo sentiu. Será que morreria? Não era tão velho, ainda não completara sessenta anos, queria viver, apaixonar-se de novo, por que não? Não, não queria morrer, não era possível... E não foi. O tumor foi retirado junto com o timo, sem qualquer metástase. O timo, disseram, é uma glândula muito importante quando se é criança porque responsável pela distribuição de hormônios, mas, depois de completada aquela missão, atrofia-se e sua ausência não faz diferença. Ótimo, não sentia falta do timo, não sentia mais medo, não sentia mais nada a não ser a sensação de haver nascido de novo e a vontade, a imensa vontade de encontrar um novo amor.

Ele me contou que eram esses seus pensamentos enquanto vistoriava seu jardim até que se deparou com uma plantinha que crescia no lugar antes da velha figueira. Ora, ora, não é que ela renascia? Arrancara tão fundo as raízes, como era possível aquilo? E não era uma só, eram duas, lado a lado. Então é assim? Saiu em busca de ferramentas para arrancar o mal pela raiz, literalmente. Quando voltou, uma ideia lhe cruzou a mente. Impossível não comparar a vida daquela árvore com a sua, tão parecidas eram. Como ele, a figueira crescera, dera sombra, frutos, envelhecera e fora cortada. E, agora, teimosa como ele, renascia como ele, forte como ele. A única diferença é que eram duas, e ele... Bem, ele era só. Deixou-as ali, para que vivessem, assim como ele queria viver. 

Ele me contou que entrelaçou os troncos ainda finos que, assim, cresceram emaranhados, virando um só tronco forte e grosso. Ah, como quisera ele também encontrar um grande amor, com ele se entrelaçar e, emaranhados, seriam um, como a bela figueira. 

Tudo isso ele me contou, naquela tarde morna, à sombra daquela árvore gigantesca. De repente, segurando-me pelos ombros, olhou-me diretamente nos olhos, e compreendi seu pedido. Emocionada, beijei-lhe a boca. Um beijo longo, fundo, molhado, banhado de figos e respondi que sim. Disse que seríamos como a majestosa figueira, sempre entrelaçados e emaranhados. Disse que nossos ramos se alongariam, atravessando distâncias e, assim, estaríamos sempre juntos, seríamos um só para o resto de nossas vidas. Disse que também daríamos frutos, não duvidasse. Os frutos seriam a felicidade escancarada, espalhada e compartilhada, e também a sombra amiga para acolher desesperançados da vida. Disse tudo isso e muito mais. 

Só uma coisa não disse. Uma ideia que me passou rapidamente pela cabeça e que, agora percebo, foi a razão do meu sonho estranho. A danada deve ter se alojado em um canto qualquer do meu subconsciente. Era uma bela abstração, sem dúvida, mas não para ser dita naquela hora em que a vida pulsava e nos acolhia tão doce e leve, aos pés e à sombra daquela árvore frondosa. Nada poderia ofuscar o brilho daquele momento mágico em que acabávamos de selar um amor poderoso. Um amor que tinha muito ainda para ser vivido, para ser deliciosamente saboreado como os frutos daquele símbolo de nossas vidas, daquele presente que nos fora ofertado pela natureza em todo seu esplendor. A eternidade já era nossa e poderia esperar.

Esta noite tive um sonho fascinante. Sonhei que era poeira e que o vento me levava... 

Share




19 comentários:

Que lindo Cecília! Uma volta bem marcada. Adorei ler esse conto, ou melhor, esse sonho. Eu me emocionei. Não sei por quê, mas tenho certeza de que há muito de você e Bruno aí. Uma história de amor, uma história de dois. E de uma figueira-cúmplice que renasce do chão depois de já ter sido quase céu. Entrelaçam-se as histórias, as vidas, as mãos, os sentimentos. E tudo germina. Parabéns! Além de tudo, é de uma suavidade repousante!

Una realtà che sboccia in un sogno. Meraviglioso da leggere.

Obrigada, Cínthia! Como sempre seu comentário vale outro texto. Amei saber que você gostou.

Ai menina Cecília...! Estou toda arrepiads, sem exagero, com o lirismo, a leveza, e ao mesmo tempo, a profundidade de teu conto. Você é uma abençoada!! Você e teu amado.

Que lindo esse conto!!! E como não poderia deixar de ser, se você e Bruno vivem um amor tão belo!!! Com certeza é a história mais linda que já li! Beijos, minha amada.

Adorei a história da Figueira!
Nada como reviver junto, com uma companhia, lado a lado, dando frutos e sombra...vivência plena...Parabéns pelo conto!!!
Gde abraço!

Cecília, não canso de me surpreender: como é possível, a cada vez que você escreve, conseguir se superar desse jeito? Como você escreve bem e cada vez ainda melhor. Como consegue transportar para as palavras os sentimentos. E como essa sua história com o Bruno é cativante, espetacular, única comovente. Vocês são mesmo dois abençoados por terem se encontrado em um mundo com tantos desencontros. E que sensibilidade a dele com a figueira! Parabéns de verdade. Marcelo.

Que bom que você voltou Cecilia Maria!!! Estava com saudade de seus escritos e me sinto hoje recompensada com esse texto maravilhoso emocionante e vibrante!!! Parabéns!!!!

Um espetáculo de texto. História comovente e muito bem escrita. Parabéns à autora. Foi um prazer a leitura.
Maria Laura Ribeiro

Obrigada a todos pela leitura e pelos comentários generosos.

Este comentário foi removido pelo autor.

Parei e pensei . Deus é engraçado . Deve ser apenas para uns poucos privilegiados conhecer uma pessoa , ou melhor ,um SER como este , que escreve sobre a vida como ninguém . Que transforma uma simples visão em poesia . Somos felizes agora que podermos desfrutar desta vida que transborda e transforma tudo em

emoção recheada de AMOR . Gratidão por existir . Gratidão por colorir a vida das pessoas. Gratidão por fazer derramar tantas lagrimas doces , que dariam para adoçar uma xícara de chá do Criador . Espero de coração que jamais pare de escrever , e verás que estás aqui para ajudar a muitos com seus escritos . GRATIDÃO

Metáfora de amor, de estabilidade, de um bem-querer que remonta às raízes, e que as transcende e toca o céu. Lirismo puro. Parabéns!

Mais uma vez querida amiga, consegue tocar minha sensibilidade... Tenho certeza que este texto, este belo sonho, tem muito haver com você e com o Bruno. A palavra eternidade no final do texto, nos mostra a grandeza desse "seu sentimento". É eterno, transcende o físico, é para sempre!!! Parabéns amiga e um Hasta Sempre!!!

Ah, Cecília! A Samizdat estava órfã de suas sutilezas, da delicadeza de seu gesto ao colher as palavras do mundo das ideias e depois organizá-las assim, em um texto que se entranha em nossa carne até nos arrancar um generoso suspiro. Lindo, loura! Lindo!

Obrigada, Bruno, Emerson, Tatiana, Elizabeth, Francesco e a todos que me compareceram e me àqueles que me prestigiaram com belos comentários. Vocês me inspiram.

Ei, amiga. Estava com saudade de ler voçê! Ler voçê, porque lemos sua alma... Sua leveza, sua delicadeza, sua capacidade de fazer poesia sobre qualquer tema sempre me comovem. Com certeza, voçê e Bruno estão entrelaçados por toda a eternidade... Parabéns!!! Parabéns pelo texto e pelo belo amor de voçês! Beijo, Patrícia Gontijo de Andrade

Obrigada, Patrícia, estava sentindo sua falta!

Caramba, Cecilia, tô tentando "catar" palavras, transpor em letras o que senti e ainda vibra dentro de mim... só posso dizer: emoção às lágrimas, senti cada frase, chorei quando a árvore foi cortada, me emocionei quando a outra árvore quase foi ceifada e me encantei quando as árvores todas renasceram para a vida e o amor para a eternidade... Amei, amei, ameiiiii... Maravilhosa metáfora... Parabéns, em cada frase senti você, essência e vida pulsantes...






Postar um comentário