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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O Caso Otto Kreuz, ou o Andarilho do Tempo

Henry Alfred Bugalho

Não é fácil encontrar, no interminável cemitério Ohlsdorf de Hamburgo, a discreta lápide sob a qual jazem os restos mortais do escritor Otto Kreuz.

Sem epitáfio algum, somente o nome e as datas
★ 1981 - † 1979

Um casal ao meu lado observava intrigado o jazigo.
— Como é possível que alguém morra antes de ter nascido? — perguntou a esposa.
— Ô mulher burra! É lógico que isto foi a cagada de alguém. Isto não existe. — respondeu o marido.
— Não fale assim comigo, seu cavalo!
— Basta parar de ser uma jumenta!
E os dois saíram discutindo pelo cemitério.

O primeiro impulso é pensar que houve um erro, tanto que os poucos biógrafos de Otto Kreuz sugerem que ele tenha nascido em 1918; um grande equívoco evidentemente, pois é notório que ele tinha mais de trinta anos de idade durante a Segunda Grande Guerra.

Otto obteve bastante sucesso na Alemanha Ocidental nos anos 70 com romances de espionagem, ficção científica e histórias românticas, quase todos escritos sob pseudônimos. Estudiosos discordam sobre o total de livros escritos por ele. Identificaram inequivocamente uma dúzia, mas suspeita-se que mais de cem obras de autoria incerta podem ter sido trabalhos de Otto Kreuz. Também escrevia contos eróticos, crônicas para jornais, críticas literárias, horóscopos, ou sobre qualquer assunto que lhe rendesse uns trocados. Uma de suas raras obras ortônimas é uma compilação de fragmentos supostamente autobiográficos intitulada O Viajante do Tempo (Der Zeitreisender, Hamburg, 1979), publicada poucos meses antes da morte do autor. É quase impossível encontrar um exemplar deste livreto hoje em dia. Um colecionador em Colônia me permitiu folheá-lo por vários minutos e afirmou que "este é o item mais excêntrico que possuo. Não faz sentido algum. Todavia, seu magnetismo é inegável".

No parágrafo introdutório, encontramos a seguinte frase:

Eu sou o viajante do tempo. Vim do amanhã, sofri no ontem, e me apago no hoje. Há muitos como eu, para quem os ponteiros do relógio nada significam. Basta olhar com cuidado que você os encontrará.
Há muitos como eu.


O autor era avesso a publicidade e quase não concedeu entrevistas. Dele só restaram duas fotografias, uma dos anos 40, com o uniforme da SS, quando era um espião infiltrado na Alemanha nazista, e outra do final da vida, com uma aparência bastante jovial que em nada condizia com quem já deveria estar na casa dos setenta anos. Tinha feições comuns, cabelos louros, olhos azuis, tez branca, ou seja, um alemão padrão, sem absolutamente nada que o distinguisse de outros alemães brancos, louros e de olhos azuis.

O mais espantoso é que não há nenhum registro de Otto Kreuz antes de 1943, tampouco entre os anos de 1945 e 1969. É simplesmente como se ele houvesse deixado de existir durante estes períodos. Supõe-se que os documentos dele tenham sido destruídos durante a guerra e houve tentativas frustradas de vinculá-lo à linhagem de certos Kreuz de Berlim, mas tudo no terreno especulativo. Alguns ousam afirmar que, no período posterior à guerra, Otto ainda continuou por muito tempo agindo como espião, atuando na URSS, Iugoslávia, Romênia, Tchecoslováquia e na Alemanha Oriental, e que vendia planos secretos dos comunistas para as potências capitalistas. Outros simplesmente especulam que ele tenha se afastado da vida pública, talvez mudado-se para algum chalé perdido na Schwarzwald, de onde ele remetia aos editores os folhetins que freneticamente produzia. Para tanto, fiam-se no seguinte fragmento:

Não posso esperar que me entendam. Por isto, isolo-me.
É como me torno imortal. (Der Zeitreisender, p. 21)


Todavia, o evento mais intrigante e misterioso envolvendo a figura de Otto Kreuz ocorreu em 2014, quando a família de um outro Otto Kreuz, desaparecido três anos antes, foi até a TV para informar que eles eram a mesma pessoa.

Foram ridicularizados publicamente, com bastante violência até, pela imprensa. Uma apresentadora chegou a chamá-los de "boçais" ao vivo, no horário nobre. Entretanto, qualquer um que houvesse prestado atenção aos depoimentos dos inconsoláveis pais e houvesse comparado as fotos destes dois Ottos, estaria disposto a repensar o caso, por mais absurdo que soasse.
O tal Otto Kreuz desaparecido havia nascido em 1981, em Berlim, e, além de professor secundarista, também era escritor. Era igualmente um alemão ordinário, que passaria despercebido na rua. Seu primeiro romance foi publicado em 2009 e teve modesta repercussão entre os críticos, apesar da pífia vendagem. Era um romance policial com duas centenas de páginas, com um estilo ainda a ser desenvolvido, mas com evidente potencial. Narrado em primeira pessoa, tratava-se de um detetive da polícia investigando os crimes de um assassino em série. No final, com a reviravolta típica do gênero, descobrimos que o psicopata era o próprio detetive, que acaba sendo morto pelas mãos de seu colega de investigação. O mais brilhante, todavia, é que, numa segunda leitura, e isto foi o que muitos críticos apontaram, o leitor pode questionar a autenticidade do relato do narrador e, no final, chegar à conclusão de que o detetive se incriminou, sacrificando-se para proteger alguém, talvez a sua esposa, que é uma personagem detestável e que aparece em alguns momentos críticos do enredo e, inexplicavelmente, até em uma das cenas de crime.

Helmut Schmidt, um eminente linguista de Heidelberg, desafiou o escárnio público e publicou um artigo com um estudo comparativo entre as obras conhecidas de Otto Kreuz (1981?-1979) e a de Otto Kreuz (1981- ).

É inegável a semelhança lexical e sintática entre os dois autores, particularmente entre os textos iniciais do Primeiro Otto Kreuz e a única obra que possuímos do Segundo Otto Kreuz. As diferenças se acentuam nas obras de maturidade do primeiro[...]. (SCHMIDT, Der Fall Otto Kreuz, 2014)


É extremamente tentador tentarmos estabelecer um vínculo entre estas duas personalidades. Seriam eles, de algum modo quase inconcebível, a mesma pessoa, ou o Otto Kreuz contemporâneo teria se inspirado e sido influenciado por seu recluso e enigmático homônimo?

A família do Otto desaparecido luta na justiça pelo direito de exumar e realizar testes na ossada do Otto enterrado em Hamburgo, mas, até o momento, ninguém levou a sério tais requisições.

Resta-nos, portanto, apenas suposições, conjeturas e dúvidas. E a inevitável indagação: é possível viajar no tempo? Seria Otto Kreuz um andarilho no tempo, para quem, segundo suas próprias palavras, "os ponteiros do relógio nada significam?"

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5 comentários:

Muito bom. Como é possível escrever um artigo mais ou menos biográfico, mais ou menos necrológico e, ainda assim, proporcionar uma leitura muito desafiante? Por outro lado, sem fazer qualquer pesquisa, pode-se duvidar da existência real destas personagens, como acontece em todos (?) os contos de Borges.
Em qualquer dos casos, muito bom. E você sabe como eu sou parco em elogios...

Obrigado pela leitura, Joaquim.

Como havia lhe dito, este é o primeiro capítulo de um romance; ao contrário de Borges, que escrevia resenhas de livros não-existentes, esta é a resenha de um livro que espero que se torne existente um dia...

Abraços.

Rapaz... curti bastante o texto e o estilo da escrita... parabéns

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