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domingo, 14 de dezembro de 2014

GLK cor de vinho




Herlander dirá que abriu a porta sem ruido e veio encontrá-la ainda sem banho e sem pequeno-almoço.
Voltaste? Esqueceste-te de alguma coisa?
Gabriela a olhá-lo espantada que nem era costume que ele voltasse, que ele se esquecesse fosse do que fosse. E Herlander passou-lhe o braço pelos ombros e tardou em desfazer o equívoco. Gabriela nem imaginando, que as palavras dele divergiam: acabei de receber um s.m.s. da mãe da Matilde. Palavras diversas das que tinha ensaiado ao fazer inversão de marcha para vir dar a notícia. Herlander a tentar o modo de dizer-lhe, e atabalhoando. Quer desdizer-se mas sabe que não pode, que ele recebeu o primeiro, e depois recebeu um segundo s.m.s.
Finalmente, de chofre, tal e qual como diziam as letras brancas a saltarem no negro do ecrã do telemóvel, Herlander pronunciou as duas palavras.
Gabriela fica hirta em frente da janela onde a gata siamesa ronrona ao lado da tigrada. O rio corre lá em baixo, mas ela não o olha, como não olha as duas nuvens solitárias muito alvas no azul luminoso daquela manhã em início de Julho. Numa cadência mole, repete, e repete, as duas palavras que Herlander lhe acaba de dizer.
E nem um choro.
Herlander, especado, espera que ela encare a dor com que, tarde ou cedo, terá que reconciliar-se. Mas Gabriela tarda, ela que paira numa realidade onde não há sentido para as palavras que repete numa lenga-lenga. Tão mentira que aquilo lhe soa. E Herlander que não lhas tira da boca a exauri-las de qualquer sentido.
Gabriela sem conseguir o alívio da lágrima, do soluço, do grito. Do abraço que não dá a Herlander.
A minha dor ali ficou suspensa na dor de Gabriela, dirá ele, e que os farrapos de nuvem, lhe pareceram um despropósito.

***

Edite ficara à espera do setecentos e sessenta que veio com atraso. Tivesse vindo na hora da tabela, e ela não teria escrito. Mas o setecentos e sessenta atrasou-se, e ela ficou à espera, iria Daniel a caminho do aeroporto levar a filha e o genro. Edite achara mais sensato, isso, do que apanharem um táxi, ela que não deu atenção à movimentação da rua e das pessoas. Na paragem, ficou apenas ela a olhar a esquina de onde o autocarro vinha já com muito atraso, e terão passado uns segundos longos, antes que Edite olhasse para onde acorria tanta gente. Quando o fez, o olhar caiu-lhe, directo, sobre o improvável.
Demasiado improvável, dirá Edite.
Tão improvável, que permaneceu aguardando o transporte. Não deu um passo.
Uma mulher que passou disse-lhe, vendo-a esticar-se sobre os tornozelos: eram três pessoas num GLK. E Edite tapou com a mão o escancarado da boca, e olhou para onde a outra apontava um indicador repleto de artroses.
Era um jipe cor de vinho, disse, ainda.
Ardeu todinho, acrescentou a mulher só pele e osso por baixo dum vestidinho sem graça nem corte.
É então que Edite digita: o Daniel teve um acidente. E busca na lista o endereço dos pais de Vicente.
Só depois deixa o passeio.
Edite que demorará a encarar o desgosto.
Ela mesma dirá: a minha dor ficou empeçada nas falas que fiz com os agentes, e com os médicos e com o pessoal das ambulâncias, e que ninguém me dissesse o que era evidente e eu nem perguntei.
Morreram todos, escreveu Edite na segunda mensagem.



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4 comentários:

Como é que consegue fazer esse zigue-zague tão benfeito? Demais!

obrigada!
vindo de feras como vocês dois, esses comentários deixam-me o ego aos pulos

mas que se passa com os meus comentários?!!

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