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terça-feira, 2 de setembro de 2014

PRESENTE DE GREGO


 

Um dia desses, enquanto ouvia pela milésima vez a canção Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, comecei a refletir sobre as incongruências de alguns valores e papéis sociais. Como a própria canção destaca, as mulheres na Grécia Antiga não gozavam de qualquer prestígio ou privilégio. Ao contrário, eram consideradas – juntamente com as crianças e os escravos – propriedade do senhor. Cabia a elas aguardar o marido, de forma submissa e amorosa, e gerar novos guerreiros que reproduzissem a ideologia vigente.

Hoje, passados mais de dois mil anos, a mulher ainda está longe de desfrutar de uma situação de igualdade em relação aos homens. Ganhou o mundo, como dizem alguns, mas continua levando a casa nas costas. Se o movimento feminista conquistou oportunidades e atendeu a algumas reivindicações femininas, ainda não conseguiu criar mecanismos que tornem a sociedade mais justa e equilibrada. Encargos domésticos que recaem sobre ela, salários menores em comparação aos dos homens que exercem funções semelhantes, além de uma ditadura estética que exige dela perfeição diante de parâmetros irreais de beleza. A rigorosa cobrança em cima da mulher em relação às suas múltiplas atribuições pesa sobre seus ombros, oprimindo-a.

O discurso machista – endossado por piadas ou músicas em que a figura feminina encarna estereótipos de burrice, futilidade, consumismo, promiscuidade e histeria – invade a mídia e reproduz padrões e clichês da sociedade patriarcal, reforçando-os.

Voltando às gregas, mote dessa reflexão, penso: a despeito de todo o código que vitimiza e subjuga a mulher, a mitologia está repleta de histórias que, se não a apresentam como protagonista, ao menos a colocam como elemento catalisador, desencadeando os acontecimentos.

Comecemos pelo Minotauro: sem dúvida, é Teseu quem derrota a hedionda criatura, libertando a todos do terror por ela representado. Mas o que seria do herói sem o novelo de Ariadne, cujo fio lhe assinalou a saída do labirinto?

E quanto a Ulisses, outro herói, eternizado pela célebre Odisseia? Seria ele tão exaltado caso não tivesse a fiel Penélope à sua espera quando retornasse? Seriam seus feitos e aventuras tão invejados se a doce esposa não tivesse inventado o estratagema de tecer e destecer a mortalha do sogro para retardar a escolha de um novo pretendente?

Se tivessem dado ouvidos a Cassandra, pitonisa amaldiçoada por prever em detalhes a Guerra de Troia, não teria sido outro o resultado? Vítima de vingança, ela foi condenada a ser desacreditada em suas profecias. Tida como louca, ninguém mais lhe dava ouvidos. Mas ela bem que avisou...

E por falar em Guerra de Troia, tudo começou quando Páris jogou uma maçã de ouro para a deusa mais bela, instaurando a discórdia entre as deusas, que passaram a disputar tal condição. Atena, Hera e Afrodite usaram de suas melhores armas, cada uma oferecendo ao rapaz prêmios invejáveis caso fosse escolhida por ele. Hera ofereceu-lhe o domínio da Ásia e da Europa. Atena ofereceu-lhe a vitória em qualquer combate em que ele tomasse parte, além de prometer dotá-lo de sabedoria. Afrodite, talvez a mais conhecedora dos desejos humanos, acenou-lhe com o amor da mulher mais bela do mundo. Desnecessário dizer que foi ela a vitoriosa, e que a Helena de Troia figura até hoje como o pivô do conflito mais famoso da mitologia clássica. Mas a escolha foi dele. E dizem ainda as más línguas que a celeuma não foi motivada propriamente pela figura de Helena, mas pelo fato de Páris ter cobiçado a esposa de seu anfitrião, desdenhando a hospitalidade do lar que o acolhia, atitude imperdoável para o código grego.

E por falar em punições, não poderíamos deixar de mencionar Pandora, cuja caixa rende até hoje uma expressão normalmente utilizada para representar os infortúnios hediondos legados à humanidade como punição pela curiosidade de sua dona, realçando a indiscrição feminina como causadora de todos os problemas. Eva e as esposas de Barba Azul, de diferentes culturas, que o digam.

Voltando a Pandora, entendamos o mito e o modo como ele foi habilmente distorcido para assegurar um modelo feminino de obediência e resignação. Segundo a mitologia, Pandora teria sido um presente enviado por todos os deuses – pan / dora – à humanidade, para ser a esposa de Epimeteu, irmão de Prometeu. Ela representava, portanto, um sinal de paz entre o Olimpo e os mortais. Além de ser dotada de inúmeras virtudes, Pandora trazia consigo uma caixa repleta de dádivas para o mundo.

E é precisamente aqui que o mito apresenta variações expressivas: quando, movida por curiosidade, ela abre a caixa, tudo o que há em seu interior escapa, e o mundo mergulha no infortúnio. Por conta disso, muitas versões afirmam que a caixa continha males, o que não pode ser verdade. Segundo outras fontes, eram dádivas – e não males – o que havia na caixa, o que soa de forma bem mais coerente.

Sabendo-se que a última coisa a escapar da caixa de Pandora teria sido a esperança – daí haver expressões como a esperança é a última que morre / a esperança é a última que fica –, o que ela estaria fazendo naquela caixa se nela só houvesse coisas ruins?

Considerando-se, ainda, que a caixa era um símbolo de paz, por que ela traria coisas ruins em vez de boas? Eram presentes o que ela trazia na misteriosa caixa. Provavelmente a confusão se deu porque, ao abri-la, essas coisas boas sumiram. Assim, a fome existe porque a abundância escapou; a morte existe porque a saúde fugiu, e assim por diante. A esperança, que estava ao lado das demais dádivas, ainda foi mantida na caixa. Mas Pandora segue, amaldiçoada, acusada injustamente de trazer pragas para o mundo.

Como se vê, a mitologia greco-latina perpassa o nosso imaginário, atuando como repositório de arquétipos, muitos dos quais perpetuam uma ideologia perversa em relação à mulher. Valhamo-nos dos exemplos ali contidos em função da beleza estética e da reflexão que podem suscitar, mas com o devido senso crítico para não reproduzir uma opressão milenar. Miremo-nos no exemplo das Mulheres de Atenas, que Chico tão ironicamente decantou, mas para mudar o mundo, em vez de eternizar a desigualdade. Do contrário, teremos recebido um autêntico presente de grego.

 

 

 

 

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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