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sábado, 20 de setembro de 2014

ATENÇÃO, ESCRITORES!


Dois assaltantes invadem uma casa de altos e baixos. Surpreenderam um pai, uma mãe e um filho de 21 anos. Gritam por um cofre. E como não há cofre, atiram no pai. Depois, é a vez do filho de 21 anos. O pai morre na hora. O filho cai ensanguentado com um tiro na cabeça.
Diante da cena, a mãe não resiste a uma fulminante parada cardíaca. Ela tem câncer na mama, estado terminal, mais fragilidade impossível.

A história não para por aí. Da família desgraçada por um fragmento de instante, sobra uma filha, a primogênita. Não se sabe de onde, ela tira forças para limpar a sangueira, enterrar pai, mãe e irmão, e ainda ter a grandeza de doar os órgãos do menino a quem há anos enfrenta fila de transplantes.
Com este gesto de bravo amor, um homem desenganado ganha um sopro de vida com um novo rim. Ou fígado, ou baço, sei lá.

Gostou da história?
Pois ela fica pior: não se trata de uma tragédia grega ou de uma ficção rascante.
É mais um episódio contemporâneo absurdo que somos obrigados a engolir.

A cada dia, perdemos para nós mesmos, anestesiados, contemplativos, rendidos ao horror ordinário.
Parece que de nada mais adianta levar a mão na consciência e refletir o quanto estamos produzindo barbárie e desprezo pela vida, através do desleixo histórico que se tem com os excluídos, os invisíveis, os mal nascidos, os miserentos, os desvalidos, os sem valores, os sem nada.

Psiu! Poupem proselitismos típicos de períodos eleitorais, quando a miséria é prometida ao extermínio, a luta de classes é lembrada e as soluções sociais surgem em varinhas de condão.

No imediato das tragédias vulgares, segue a guerra de sentimentos e bravatas.
Evocam-se os Direitos Humanos, questiona-se a justiça que protege o assassino rico,
tenta se teorizar sobre a origem da violência, desperta-se a ira dos que defendem
a pena de morte, e blá e blá e blá.

Fé e ateísmo se confrontam:
“Se foi a vontade de Deus, por que Deus fez isso com a filha sobrevivente?”
E o estado de torpor nos martela: “Conformem-se, humanos: esta é a vossa sina. Fazer o quê?”.

É incrível como a vida tem o talento de exibir histórias macabras e perversas, tramas que beiram o inverossímil, vilões monstruosos de carne e osso, vítimas de inocências banais.

E como é vasta a obra que a vida expõe.
Uma motorista é assaltada, não consegue desvencilhar o cinto de segurança da cadeirinha do filho, que sai pendurado e arrastado pelo asfalto. Outra mãe vê seu filho estraçalhado por policiais, que o confundiram com um bandido dentro de um carro. Outra tem sua filha espancada até a morte pela madrasta e ainda jogada do alto de um prédio pelo próprio pai como uma boneca de pano.
Outra madrasta, em conluio com uma amiga e o pai - eu disse o pai! - elimina o enteado com injeções letais. Pronto, acabou o problema do casal. Aquele menino "chato" não chateia mais.
Enquanto isso, policiais matam em confronto entre aspas, executam sob câmeras abelhudas e morrem em emboscadas, por incompetência, instrução, vingança ou gozo, tanto faz.
Uma namorada estuprada vê o namorado agonizar dentro de uma gruta numa praia selvagem.
Uma mulher sai para fazer um aborto e desaparece.
Reféns são degolados num espetáculo de requinte globalizado.
Um jornalista é queimado vivo, seus ossos são encontrados como se fossem de um frango assado chupados num piquenique. De picuinha com a ex-mulher, um pai seqüestra o filho, dá um tiro na nuca do menino e se mata ao lado numa cama de hotel.

Sobe a trilha, entram os letreiros. Mas não tem "The end".
Parecem ideias de filmes, romances, novelas. Darão boa audiência, bilheteria e fama, mesmo que fugaz. Só que já fizeram.
Se voce é dado à imaginação fértil, liberta e tem habilidade com as letras,
cuidado com sua próxima história. Cuidado para não ser acusado de plágio pela vida real.
Talvez dê em processo. Ou tiro ali na esquina.

Basta fechar os olhos, que a lembrança de tais tragédias se projetam no nosso cineminha interno.
Só que minha memória seletiva e medrosa está bloqueando outros tantos enredos hediondos, piores que os piores roteiros criados por escritores de talento, personalidade, valor e estilo.

Pois então, caros criadores de ficção extrema: a realidade está superando vocês.
Seus empregos estão por um fio.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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